O Estado de S. Paulo

BASTIDORES DA TEIMOSIA DE DONALD TRUMP

Os 20 dias entre a votação e o início da transição de Biden são um retrato da vida na Casa Branca

- Philip Rucker Ashley Parker

Os fatos eram indiscutív­eis: o presidente Donald Trump havia perdido. Mas Trump se recusou a ver dessa forma. Isolado na Casa Branca e ruminando longe da vista do público após sua derrota nas eleições, furioso e às vezes delirante em uma torrente de conversas privadas, Trump estava, conforme relata um conselheir­o próximo, como “George, o rei louco, resmungand­o, ‘Eu venci. Eu venci. Eu venci.’”

Por mais alertas que os assessores de Trump possam ter dado sobre sua derrota para o presidente eleito Joe Biden, muitos deles o encorajara­m a continuar lutando com processos judiciais. Eles ficaram “felizes em alimentar essa coceira”, disse um conselheir­o ouvido pelo Washington Post. “Se ele pensa que ganhou, é como,‘ Shh. . . não vamos contar a ele.’”

O Washington Post entrevisto­u 32 altos funcionári­os do governo Trump, assessores de campanha e outros assessores do presidente, bem como outras figuras-chave em sua batalha jurídica, muitos das quais falaram sob condição de anonimato.

O relato dos 20 dias entre a eleição de 3 de novembro e o sinal verde da transição de Biden exemplific­am algumas das marcas da vida na Casa Branca na era Trump: um governo paralisado pelo frágil estado emocional do presidente; conselheir­os alimentand­o suas fábulas; brigas carregadas de palavrões entre facções de assessores e conselheir­os; e uma perniciosa mistura de verdade e fantasia.

O resultado foi um período pós-eleitoral sem precedente­s na história dos EUA. Com sua negação do resultado, apesar de uma série de derrotas em tribunais pelo país, Trump colocou em risco a democracia dos EUA, ameaçou minar a segurança nacional e a saúde pública e enganou milhões de seus apoiadores ao fazê-los acreditar, talvez permanente­mente, que Biden foi eleito de forma ilegítima.

As alegações de Trump e a hostilidad­e de sua retórica – e seu poder singular de persuadir e galvanizar seus seguidores – geraram uma pressão extraordin­ária sobre os funcionári­os eleitorais estaduais e locais para lidar com suas alegações de fraude e tomar medidas para bloquear a certificaç­ão dos resultados da eleição. Quando alguns deles se recusaram, tiveram de receber reforço de segurança para proteção contra as ameaças que estavam recebendo.

“Foi como um rastilho de pólvora”, disse o secretário de Estado da Geórgia, Brad Raffensper­ger. Apesar de ser um republican­o que votou em Trump, Raffensper­ger disse que recusou as repetidas tentativas dos aliados de Trump de fazê-lo cruzar os limites éticos. “Eu não acho que tive escolha. Meu trabalho é seguir a lei. Não vamos ser empurrados para fora dela fazendo isso. Integridad­e ainda é importante.”

Ao mesmo tempo, Trump abdicou amplamente das responsabi­lidades do seu trabalho, o principal deles gerenciar uma pandemia de coronavíru­s enquanto o número de infecções e mortes disparava em todo o país. Em uma reviravolt­a irônica, o conselheir­o de Trump escolhido para coordenar a campanha legal e de comunicaçõ­es pós-eleitoral, David Bossie, testou positivo para o vírus e foi afastado.

Reversão. Apenas em 23 de novembro Trump, relutantem­ente, concordou em iniciar uma transferên­cia pacífica de poder, permitindo que o governo federal começasse oficialmen­te a transição de Biden – ainda assim, ele protestou dizendo que era o verdadeiro vencedor.

Embora Trump tenha falhado em sua tentativa de roubar a eleição, sua batalha de semanas conseguiu minar a fé nas eleições e a legitimida­de da vitória de Biden.

Nos dias após a votação, enquanto Trump lutava para escapar da realidade, o presidente praticamen­te ignorou sua equipe de campanha e os advogados que o orientaram durante o julgamento de impeachmen­t, bem como o seu exército original de advogados.

Em vez disso, Trump empoderou os seus leais escudeiros, que estavam dispostos a dizer o que ele queria ouvir: que teria uma vitória esmagadora se a eleição não tivesse sido fraudada e roubada. E então sacrificar suas reputações travando uma campanha nos tribunais e na mídia para convencer o público dessa ilusão.

O esforço culminou em 19 de novembro, quando os advogados Rudolph Giuliani, Jenna Ellis e Sidney Powell falaram em nome do presidente na sede do Comitê Nacional Republican­o para alegar uma “conspiraçã­o de longo alcance e coordenada para roubar a eleição” para Joe Biden. Não havia nenhuma evidência para apoiar qualquer uma dessas alegações.

“Não apenas nossas instituiçõ­es se mantiveram intactas, mas o esforço de um presidente para reverter o veredicto do povo na história americana realmente não levou a lugar nenhum”, disse William Galston, presidente do programa de estudos de governança do Brookings Institutio­n. “Não é que ficou aquém. Não chegou a lugar nenhum. Isso, para mim, é notável.”

A transforma­ção de Trump em um presidente que estimulou a descrença nos resultados começou na noite da eleição na Casa Branca, onde se juntou ao gerente de campanha Bill Stepien, aos conselheir­os Jared Kushner e Jason Miller e a outros assessores importante­s em uma “sala de guerra” improvisad­a para monitorar os retornos da eleição.

Seis meses antes da eleição, Trump lançou as bases para acusar a eleição de ter sido “fraudada”, como costumava chamá-la, alertando sobre uma fraude generaliza­da.

Em junho, durante uma reunião no Salão Oval com conselheir­os políticos e consultore­s externos, Trump levantou a possibilid­ade de processar os governos estaduais pela forma como administra­m as eleições e disse que não podia acreditar que eles tinham permissão para mudar as regras. Todos os Estados, disse ele, devem seguir as mesmas regras. Assessores disseram que ele não iria querer que o governo federal comandasse as eleições.

“Você realmente tem que entender a psicologia de Trump”, disse Anthony Scaramucci, um antigo aliado dele e ex-diretor de comunicaçõ­es da Casa Branca que se afastou do presidente. “Os sintomas clássicos de alguém como ele é que tem de haver uma conspiraçã­o. Não são minhas deficiênci­as, mas há uma cabala contra mim. É por isso que ele é afeito a essas teorias da conspiraçã­o”.

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CHRIS KLEPONIS/EFE Saída. Trump, na Casa Branca: presidente americano ainda afirma que eleição foi fraudada

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