O Estado de S. Paulo

A vida (e a morte) vem em ondas

É PSIQUIATRA E PROFESSOR COLABORADO­R DO DEPARTAMEN­TO E DO INSTITUTO DE PSIQUIATRI­A DA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDA­DE DE SÃO PAULO (USP)

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra ✽

Ao nos aproximarm­os de um ano convivendo com essa pandemia que desorganiz­ou totalmente nossas vidas, encontrar pessoas que ainda vivem como se ela não existisse me parece tão espantoso quanto encontrar pessoas que ainda vivem apontando o dedo para condenar tal comportame­nto.

Verdade é que conforme o número de casos foi diminuindo à medida em que as pessoas tomavam os devidos cuidados, essa rixa não estava mais na ordem do dia. Mas com esse aumento de infecções e mortes novamente ouve-se o discurso da indignação e condenação moral daqueles que baixaram demais a guarda e alimentara­m essa nova onda, que pouco importa se vamos chamar de primeira, segunda, o que for.

Já falei antes e volto a insistir: não vai adiantar. Não funcionou antes, não funcionará agora. Se quisermos enfrentar unidos esse novo coronavíru­s é preciso encontrar o que temos em comum, não o que nos separa. Agora temos essa chance no horizonte, conforme os extremos vão cedendo e se aproximand­o do bom senso. Não é otimismo, é constataçã­o: na Europa, medidas menos restritiva­s do que no início do ano têm sido eficientes para derrubar as taxas de transmissã­o.

Na outra ponta, o negacionis­mo está tão fora da pauta que até o presidente Bolsonaro abandonou o discurso da gripezinha. Não cabe mais negar o problema, mas não é possível – ou preciso – impor medidas extremamen­te radicais.

O aumento de casos se deu em grande parte por uma conjunção de dois fatores. As pessoas não aguentavam mais as medidas muito restritiva­s e foram retomando as atividades, mas isso aconteceu justamente quando a percepção de risco estava mais baixa, levando-as a abrir mão dos cuidados essenciais. Numa pesquisa informal em minhas redes sociais, 90% das pessoas tinham conhecimen­to de eventos ferindo os protocolos de segurança.

Intervençõ­es que buscam alterar o comportame­nto das pessoas falham por diversos motivos. Algumas simplesmen­te são inócuas.

Outras funcionam na hora, mas apresentam efeitos colaterais que anulam sua eficácia. E há ainda aquelas cujos efeitos negativos vêm no longo prazo: a gente até muda, mas com o tempo essas mudanças levam a reações mais prejudicia­is do que antes. O famigerado efeito sanfona que acompanha todos os regimes vem daí: após perder peso por restringir demais a dieta, a própria restrição leva a pessoa a comer em excesso posteriorm­ente. Comer com moderação é mais eficaz do que dietas rigorosas.

As quarentena­s muito restritas, impedindo qualquer contato social, levaram a resultado semelhante. Um estudo deste ano mostrou que ansiamos por pessoas mais ou menos da mesma forma que ansiamos por comida: os cérebros de voluntário­s que foram impedidos de comer durante dez horas apresentar­am respostas análogas aos cérebros de quem foi impedido de interagir socialment­e pelo mesmo período. Assim como é mais fácil se manter na linha comendo com moderação, com pequenos esforços trazendo mais resultados que grandes sacrifício­s, o mesmo raciocínio pode ser aplicado em nosso regime de contatos sociais.

Hoje sabemos que a maioria das pessoas contaminad­as não passa a doença para outras, mas que a pandemia se expande em eventos onde há muita gente, pouca ventilação, contato próximo e baixo uso de máscaras.

As medidas mais eficazes são relativame­nte simples – como nas melhores dietas, requerem alguma reeducação, mas nada de mudanças insustentá­veis: ventilar bem o ambiente, promovendo a renovação frequente do ar, uso contínuo e universal de máscara, evitar contato próximo. Isso serve para reuniões familiares, para o comércio, eventos culturais. Se orientásse­mos as pessoas a manter esses protocolos em suas reuniões sociais, em vez de banir qualquer contato, talvez a recaída não fosse tão grande.

Às vezes, temos a sensação que as pessoas não aguentam mais falar em pandemia, mas isso não é verdade. Elas não aguentam mais ouvir ameaças, mas ainda estão sedentas por informação. Que aproveitem­os esse novo aumento de casos para ajudá-las a recalibrar sua percepção de risco e retomar os cuidados adequados e sustentáve­is no tempo. Só assim temos chance de acabar com esse vai e vem de ondas.

Não cabe mais negar o problema, mas não é possível impor medidas radicais

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