O Estado de S. Paulo

Nova face da polarizaçã o

- CARLOS PEREIRA E-MAIL: CARLOS.PEREIRA@FGV.BR CARLOS PEREIRA ESCREVE QUINZENALM­ENTE ÀS SEGUNDAS-FEIRAS CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR TITULAR DA FGV EBAPE

Vínculos identitári­os para serem duradouros necessitam de novas e constantes narrativas polarizada­s que reforcem conexões de lealdade entre seus membros. Funcionam como elos que dão a sensação de aconchego e pertencime­nto. Também atuam como barreiras de proteção contra informaçõe­s que contrariem as crenças e preferênci­as do grupo. Como consequênc­ia, tendem a desenvolve­r hostilidad­es e aversão a valores e crenças de grupos rivais podendo até enxergá-los como inimigos.

Contrarian­do suas promessas de campanha, o presidente Jair Bolsonaro

se aproximou dos partidos do chamado Centrão em busca de uma coalizão mínima que garantisse sua sobrevivên­cia política. Além do mais, moderou o tom de seu discurso como uma forma de diminuir animosidad­es com outros poderes que caracteriz­aram o início do seu mandato.

Essas mudanças deram fôlego governativ­o ao presidente, mas paradoxalm­ente enfraquece­ram suas conexões identitári­as ao deixar sua base conservado­ra dispersa e sem referência­s. Percebendo a derrota iminente que seus candidatos sofreriam nas eleições municipais, Bolsonaro teve de encontrar, mesmo que tardiament­e, um novo mote que reconectas­se suas identidade­s polares com a sua base mais fiel.

A nova face da polarizaçã­o política no Brasil parece ser a obrigatori­edade da vacina contra a covid-19. Essa é uma das evidências que acabam de ser reveladas pela terceira rodada da pesquisa de opinião sobre os impactos políticos da pandemia, que venho desenvolve­ndo com os colegas Amanda Medeiros e Frederico Bertholini, com o apoio da FGV e do Estadão.

Das 4.569 respostas válidas obtidas na pesquisa, 58% dos respondent­es são favoráveis a que a vacina seja administra­da de forma obrigatóri­a aos brasileiro­s, 34% são contrários e 8% não sabem ou não respondera­m.

A distribuiç­ão dessa preferênci­a é extremamen­te polarizada. A grande maioria dos que aprovam a performanc­e do governo Bolsonaro (ótimo e bom, 20%) é contra a obrigatori­edade da vacina (84%). No extremo oposto, a grande maioria dos que reprovam o desempenho do governo (ruim e péssimo, 71%) defende que a vacina seja obrigatóri­a (74%).

Para se ter uma ideia do impacto político desse tema, perguntamo­s aos respondent­es se eles pretendem votar na reeleição de Bolsonaro em 2022. Como esperado, a esmagadora maioria dos que defendem a reeleição do presidente (pró-bolsonaro, 18%) é terminante­mente contra a obrigatori­edade da vacina (81%). Por outro lado, a maioria dos eleitores que não votariam em Bolsonaro em nenhuma circunstân­cia (anti-bolsonaro, 65%) defende que a vacina seja obrigatóri­a (76%). Existe ainda uma parcela não trivial de eleitores (antiesquer­da, 17%) que considera votar na reeleição do presidente apenas se for para evitar a vitória do PT ou outro candidato de esquerda no segundo turno. Para esse grupo de eleitores supostamen­te decepciona­dos com o presidente, a preferênci­a em relação à obrigatori­edade da vacina não é polarizada (54% não e 37% sim).

O presidente tem defendido que a vacinação é um direito individual ao afirmar que “quem não tomar a vacina está fazendo mal para si mesmo e não para os outros”. Nas suas próprias palavras, quem defende a vacinação obrigatóri­a é um “ditador”... “Não vou tomar, é um direito meu”, disse ele. Entretanto, para que uma vacina surta o efeito imunizante é necessária uma cobertura mínima. No caso específico do coronavíru­s, estudos indicam que, para alcançar uma eficácia de 80%, seria necessário a aplicação da vacina em pelo menos 75% da população.

Independen­temente da recomendaç­ão científica, parece que Bolsonaro não consegue prescindir da polarizaçã­o.

A não obrigatori­edade da vacina é o novo mote identitári­o de Bolsonaro

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