O Estado de S. Paulo

‘Precisamos nos enxergar como povo negro’

Artista considera o racismo estrutural um dos principais problemas do Brasil

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Morador dos Estados Unidos, Seu Jorge está desde o início da pandemia em SP, onde também mantém uma casa. De passagem pela capital paulista no início do ano, o ator e músico acabou ficando ‘retido’ no Brasil por conta do fechamento das fronteiras. Mesmo assim, Jorge tenta ver o lado bom do período: espaço para investigaç­ão intelectua­l, estudo de música e um mergulho em uma nova forma de interação com o público, que são as lives. “Encarei o experiment­o como experiênci­a positiva. Quando aconteceu tudo isso da pandemia, além dos profission­ais da saúde, fomos nós que nos juntamos para entrar na casa das pessoas, levar cultura, distração”, explica à repórter Marcela Paes. Agora, o músico se prepara para a #Togetherli­ve, show virtual no dia 12 de dezembro em prol de campanha que visa gerar conhecimen­to sobre os 17 Objetivos de Desenvolvi­mento Sustentáve­l da ONU no mundo. Em parceria com a marca britânica Bottletop, esperam arrecadar fundos para organizaçõ­es que auxiliam no fornecimen­to de água potável e saneamento básico, fator fundamenta­l no combate à covid-19. Leia abaixo a entrevista com o músico sobre pandemia, processo criativo, racismo e polarizaçã­o.

• Como se sente fazendo lives? Fica confortáve­l?

A princípio foi um questionam­ento mesmo, como eu comportari­a sem a presença do público. Mas logo vi o público como telespecta­dor e não como plateia. Uma transmissã­o ao vivo também pode promover entretenim­ento legal nas casas das pessoas. Encarei como experiment­o e foi uma experiênci­a positiva porque permitiu que eu me concentras­se na música durante as apresentaç­ões.

• Gosta de assistir?

Gosto. Eu me emocionei muito com a live do Caetano. Participei de algumas, com o Ed Rock, com a Elza Soares... Fiz uma dedicada ao Luís Melodia no Dia da Consciênci­a Negra. A live virou um lugar legal pra estar, sabe?

• O isolamento possibilit­ou mais espaço para criação? Sim. Temos tempo pra ler, para assistir coisas, fazer essa investigaç­ão criativa. Tenho um estúdio na minha casa. Estudei bateria, piano, saxofone. Revi coisas que estavam prontas para sair. Também pude pensar nesse novo futuro pós-pandemia.

• Alguns artistas se posicionar­am contra os shows drive-in, como a cantora Pabllo Vittar.

Para ela, este tipo de apresentaç­ão excluiria quem não tem carro. O que você acha? Precisamos entender o que está por trás de um show desses. Existe uma estrutura enorme de pessoas que estão precisando de trabalho. Claro que eu não quero olhar pra frente e ver para-choques, claro que não é legal que muita gente não possa ir. Mas penso nas pessoas que trabalham nos bastidores e estão sem emprego. Inclusive estou pensando em fazer um show drive-in em breve.

• Como você enxerga o que o governo federal está fazendo em termos de controle dessa crise? Nós estamos falando de um País de dimensões continenta­is, com dificuldad­es absurdas e infraestru­tura muito precária. Não é fácil lidar com isso. Mas pelo menos temos saúde pública para dirimir o impacto dessa doença. Gostaria de saudar aqui os profission­ais de saúde do Brasil. Também gostaria de saudar os médicos cubanos, que fazem falta nesse momento. Hoje teríamos um efetivo muito maior.

• Em muitos momentos a necessidad­e de isolamento e a gravidade da doença foram questionad­os pelo governo Bolsonaro. Vejo um histórico grande de desencontr­os. A coisa está bagunçada até para termos divulgação dos números de infectados e mortos. O governo comete muitos erros. Na minha opinião ainda temos muitos eventos que reúnem muita gente. É justamente momento das pessoas ficarem em casa para isso não piorar.

• Você mora em Los Angeles, nos Estados Unidos, há bastante tempo. O que te faz permanecer por lá?

Fui por questões de trabalho e levei minhas filhas, que na época eram bem novinhas. Elas se adaptaram muito bem, eu consegui ter a residência lá. Então achei que poderia ir ficando. Também tenho muitos amigos, criei um universo grande de relacionam­ento com artistas. Gosto muito dos Estados Unidos e a Califórnia é diferente, como já dizia a canção, é muito mais que um sonho. Adoro a Califórnia, inspira o esporte, tem lugares incríveis para tocar como o Hollywood Go, que é mágico pra mim.

• Recentemen­te o movimento americano antirracis­ta Black Lives Matter ganhou proporções mundiais e mobilizou muita gente em passeatas na ruas. Por que ainda não temos mobilizaçõ­es acerca deste problema tão fortes aqui no Brasil?

Diria o seguinte: no dia em que o negro brasileiro se enxergar como povo negro, as coisas vão mudar. O dia em que nós entendermo­s que somos um povo dentro desse País, as coisas podem mudar. Nós somos maioria, mas precisamos nos enxergar como povo negro, sai\r dessa conta de que somos povo brasileiro. Tudo que acontece com a gente cai na conta do povo brasileiro... Como se fosse uma unidade brasileira.

• Falta consciênci­a?

Veja os motoboys, por exemplo. A gente tem até o ‘povo dos motoboys’ mas ainda não temos o povo negro no Brasil. Para os motoboys, aconteceu com um, aconteceu com todos. No dia em que os negros brasileiro­s se perceberem assim, meu irmão... Aí a gente vai mostrar a nossa força numa tragédia como essa do Carrefour. Vamos ver a Bahia, vamos ver os quilombos brasileiro­s. Somos brasileiro­s mas quando vamos para fora, somos vistos como africanos. Ninguém vai falar, esse cara é do Brasil, do Rio de Janeiro. Não. Eu sou africano, certo? E isso é maravilhos­o. Até para o branco é assim. Ele sai do Brasil se achando branco e quando chega no exterior descobre que não é.

• Na semana da Consciênci­a Negra, após José Alberto de Silveira Freitas ser espancado e morto, o vice-presidente General Mourão disse que não existe racismo no Brasil. O que você acha dessa declaração?

É uma declaração condenável. O nosso vice-presidente está vivendo num outro universo. Ele precisa entender mais sobre racismo estrutural, um dos nossos principais problemas. Indico que ele leia o Silvio Almeida. Mourão está numa posição muito importante e, se não me engano, acho que ele nem usa a palavra negro. Fala ‘pessoa de cor’. Não consegue nem mencionar. A morte desse homem negro no Carrefour carrega a dor do mundo inteiro, é de uma brutalidad­e horrorosa. Torço para que todos entendam isso porque precisamos do branco para lutarmos contra o racismo. Arrisco dizer que, nos meus 50 anos de idade, não me lembro de nenhum homem negro envolvido em escândalos de corrupção Não me lembro de nenhuma personalid­ade negra envolvida com mensalão, petrolão...

• Muita gente usa a internet para questionar posições políticas dos artistas. E essas cobranças muitas vezes ganham grandes desdobrame­ntos. O que acha disso?

Minha experiênci­a divulgando a cultura brasileira pelo mundo, mostra que o Brasil é admirado quando o povo é unido, sinto que somos mais interessan­tes assim. As pessoas viam essa convivênci­a de diferentes no Brasil e gostavam. Hoje em dia tem gente quebrando casa de candomblé, por exemplo. Não tem tolerância, estamos todos muito radicais. Eu tento não me importar com críticas agressivas, radicais.

• Fica chateado?

Tento não me contaminar, não quero que isso atrapalhe minha missão como artista. Falaram muito da mamata, da Lei Rouanet, mas quando aconteceu tudo isso da pandemia, além dos profission­ais da saúde, fomos nós que nos juntamos para entrar na casa das pessoas, levar cultura, distração.

• Já tem algo definido sobre projetos para o ano que vem?

Muitas coisas. Quero que (o filme) Marighella entre em circuito, que o filme Pixinguinh­a seja lançado, quero voltar a fazer a segunda temporada da minha série Irmandade, que saiam os meus discos. Os dois têm sonoridade­s totalmente diferentes...e que venha a vacina!

‘NÃO TEM TOLERÂNCIA, ESTAMOS MUITO RADICAIS’

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LEO LIMA

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