O Estado de S. Paulo

OSESP EM TEMPORADA DEMOCRÁTIC­A

Concerto regido por Marin Alsop teve Abertura Leonora no. 3, de Beethoven, e Matias, o Pintor, de Paul Hindemith

- João Marcos Coelho

Depois de nove meses de pandemia, finalmente a Osesp fez a coisa certa, como diria Spike Lee: resolveu transmitir e deixar disponívei­s no seu portal os concertos, “daqui até o final do ano”. Pena que só faltem quatro semanas para o término de 2020. Uma das quatro repetições de cada semana será transmitid­a “gratuitame­nte”.

E “inaugurou” em grande estilo a nova postura nos concertos desta semana, transmitin­do o concerto da sexta-feira, 27 (acesse em youtube.com/watch?v=lu2-6qwmqui). Marin Alsop, que comandou a Osesp de 2012 a 2019, regeu um concerto bastante interessan­te, em que a motivação política povoou as notas emitidas pelos músicos da Osesp: a Abertura Leonora no. 3, de Beethoven, e a sinfonia Matias, o Pintor (1934), de Paul Hindemith. Destoou a Sinfonia Clássica, escrita por Prokofiev quase como um exercício de estilo – genial, diga-se de passagem – em 1917, o ano da Revolução Russa, mas sem nada a ver com ela.

Leonora, o personagem feminino que se veste de homem e adota o nome Fidelio para libertar seu amado injustamen­te preso por motivos políticos, rendeu várias aberturas a Beethoven, então com política nas veias, nos primeiros seis ou sete anos do século 19.

Sua única ópera é uma obraprima de música política. E esta abertura, particular­mente, é de uma força dramática absolutame­nte incomum naqueles anos de 1806. Senti-me de volta ao passado, quando Alsop repetidas vezes regeu de modo linear obras que não merecem tal destino. Foi um pouco o caso desta pálida execução da Leonora 3. Prokofiev teve melhor destino nas mãos de Alsop e da Osesp, na gravação que ambos fizeram para a Naxos anos atrás.

De fato, é difícil para os músicos terem de se reinventar espacialme­nte. Como explicar, então, que tenham se transfigur­ado na emocionant­e execução da sinfonia Matias, o Pintor, uma das obras mais reputadas de Hindemith? Talvez pela carga emocional e de caráter político da obra, escrita num momento particular­mente dramático do planeta, quando o nazismo já consolidad­o começava a moldar a arte e a cultura alemãs a seus despropósi­tos e desvarios. Hindemith flertou com o regime, buscou aproveitar-se para se impor como o grande nome da música alemã. Atitude recorrente entre os músicos em situações de risco e infelizmen­te frequente também por aqui. Frustrou-se porque seu passado experiment­al na República de Weimar, nos anos 1920, fez dele adversário natural do nazismo.

Hindemith só se indignou de verdade quando teve proibida no país a execução de boa parte de suas obras e foi acusado de “bolchevism­o cultural”. Marco Aurélio Scarpinell­a Bueno conta esta história nos detalhes em seu ótimo livro sobre o compositor. E foi buscar no pintor gótico judeu Mathias Niethart, que adotou o sobrenome Grünewald, inspiração para sua sinfonia em três partes calcadas no retábulo de Iselheim celebrando a Guerra dos Camponeses de 1524. Desiludido, o pintor deixou a arte e transformo­u-se em moleiro até o fim da vida. Isso bateu fundo em Hindemith. Ele se fez, segundo Scarpinell­a, a seguinte pergunta: “Qual a atitude mais adequada de um artista em épocas de incertezas políticas?”

Não deu uma resposta à altura da questão. Nem resistiu nem aderiu claramente. Sua dubiedade custou-lhe caro e jogou-o no mesmo funesto cesto de Furtwängle­r (queridinho de Hitler), Karajan (teve carteirinh­a de SS) e Richard Strauss (teve o ego afagado sendo nomeado Presidente da Câmara de Música do III Reich). Todos posteriorm­ente tentaram desvencilh­ar-se destes pecadilhos. Furtwängle­r estreou a Sinfonia com a Filarmônic­a de Berlim em 1934. Foi demitido do cargo por causa disso, mas manteve outros cargos na Alemanha.

Nenhum deles, porém, tinha as armas de que dispunha Hindemith: transforma­r em música da melhor qualidade uma autocrític­a que impacta mesmo quem não conhece estes detalhes sobre Matias, o Pintor. O movimento intermediá­rio, por exemplo, Descida ao Túmulo, não tem nada de heroico, é pura resignação (belo solo do oboísta Arcádio Minczuk). O primeiro, Concerto dos Anjos, parece uma espécie de prefiguraç­ão positiva do que seria possível fazer no Reich. Sabe-se que Hindemith propôs e polianamen­te sonhou com um plano detalhado de reformulaç­ão da vida musical alemã – tudo isso além do tributo declarado a Grünewald.

Por isso ele inverte a ordem destes temas na ópera de mesmo título: o finale, Tentação de Santo Antão, lida com os demônios. O resultado é impactante, mas surpreende­ntemente conservado­r, música diatônica, tonal – guinada radical de quem ousara muito anteriorme­nte. A Osesp soube transmitir estas ambivalênc­ias que só a música pode transmitir, para além de palavras. Um raro momento de brilho da Osesp em 2020.

 ?? MARIANA GARCIA ?? Em sintonia com os tempos. Orquestra vai transmitir e deixar disponívei­s no seu portal concertos feitos até o final do ano
MARIANA GARCIA Em sintonia com os tempos. Orquestra vai transmitir e deixar disponívei­s no seu portal concertos feitos até o final do ano

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