O Estado de S. Paulo

Brasil se despede de missões de paz da ONU após 21 anos

Para diplomatas, ausência de contingent­e brasileiro reduz projeção internacio­nal; militares permanecem em missões individuai­s

- Marcelo Godoy Paulo Beraldo

Com a saída da Marinha da Unifil, força de paz marítima da ONU, o Brasil ficará sem tropa em missões de paz das Nações Unidas pela primeira vez desde 1999.

Amanhã, quando o mestre da fragata Independên­cia executar os toques de apito para o comandante da embarcação, em Beirute, no Líbano, a cerimônia de bordo da Marinha vai marcar o fim de uma era da diplomacia brasileira e de sua Defesa: pela primeira vez em 21 anos, o Brasil ficará sem contingent­es em missões de paz das Nações Unidas.

Desde 2011 o Brasil fazia parte da Unifil, única força de paz marítima da ONU, responsáve­l pelo patrulhame­nto das águas territoria­is libanesas. A Marinha exercia o comando da missão, que, agora, deve passar para a Alemanha. A Independên­cia foi a última fragata enviada ao Oriente Médio. Havia partido, em 8 de março, do Rio para o Líbano, levando helicópter­o, um grupo de mergulhado­res de combate e um destacamen­to de fuzileiros navais. Era a nau capitânia da Unifil, quando escapou por pouco da explosão do depósito de nitrato de amônia que devastou a capital libanesa em agosto.

A fragata, cuja missão era impedir a entrada de materiais ilegais no Líbano, deve chegar ao Brasil no dia 28. Em 1.º de janeiro, o contra-almirante Sergio Renato Salgueirin­ho passará o comando da força. Isso não significa uma saída do Brasil do sistema ONU, pois restarão como capacetes azuis os militares em missões individuai­s que trabalham como observador­es, instrutore­s ou no Estado-maior.

Foi nos anos 1990 que aconteceu a volta das tropas do País em forças de paz. Em 1994, 200 paraquedis­tas estiveram na Onumoz, a força da ONU em Moçambique. Seu comandante, o general Franklimbe­rgue Freitas lembra que a tropa abriu o caminho na ONU para que a presença brasileira fosse requisitad­a outras vezes. A missão seguinte foi em Angola, durou quase três anos e mobilizou 4.485 homens.

Em 1997, o Brasil ficaria pela última vez sem contingent­e em missão de paz. O atual período de 21 anos de missões começou em 1999, quando o então major Fernando do Carmo Fernandes chegou ao Timor Leste, como oficial de ligação do contingent­e brasileiro com as tropas australian­as. A ação na ilha devia estabiliza­r o país. Dias depois, 51 homens da Polícia do Exército desembarca­ram.

Projeção. Depois do Timor, o País mandou tropas para o Haiti e para o Líbano. Ao todo, 38,2 mil brasileiro­s participar­am dessas operações. A presença nas missões era considerad­a uma forma de projeção do poder nacional no momento em que o Itamaraty buscava abrir novos espaços para o Brasil nos organismos internacio­nais, com reivindica­ções como a reforma do Conselho de Segurança da ONU a fim de nele obter uma cadeira.

“Havia da parte dos diplomatas e dos militares essa consciênci­a de que essas operações eram complement­o indispensá­vel à ação de um país como o nosso, que não tem propriamen­te poder militar”, disse o embaixador Rubens Ricupero. Diplomatas

e militares concordam que a ausência de tropa nas forças de paz pode trazer consequênc­ias.

Na área da Defesa, pode afetar a sua modernizaç­ão por meio da aquisição de experiênci­a e doutrina para o emprego de tropas – exemplo disso foi a mudança da logística do Exército em operações no exterior após a ação no Haiti. Para Ricupero, a presença do País no mundo e sua relevância serão diminuídas. “A força no Líbano era a única presença significat­iva brasileira em uma área estratégic­a importante.”

O general Adhemar da Costa Machado Filho, um dos comandante­s brasileiro­s em Angola, escreveu monografia na Escola de Comando e Estado-maior do Exército na qual dizia que a participaç­ão do País nas forças de paz proporcion­ava a “oportunida­de de projetar a expressão militar do poder nacional no exterior, o que, em última análise, representa um acréscimo da influência do poder nacional no contexto internacio­nal”. Passados 21 anos, o general mantém a opinião. “O Brasil tem um perfil que se ajusta a essas missões.”

O economista Carlos Lopes, ex-diretor político do secretário-geral Kofi Anan e ex-representa­nte da ONU no Brasil, lembrou que desde o governo de Dilma Rousseff há uma retração dessas políticas e da presença do Brasil no cenário internacio­nal. “Não começou com (Jair) Bolsonaro nem com (Michel) Temer. Estamos assistindo a uma contração da presença brasileira nos fóruns multilater­ais, que agora atingiu o clímax com o presidente Bolsonaro”, disse. “Há desinteres­se generaliza­do pelas questões de manutenção de paz. O Brasil se retirou de tudo isso.”

O desejo de manter tropas no exterior esbarrou nos gastos. Entre 2004 e 2017, a tropa no Haiti custou R$ 2,6 bilhões aos cofres públicos. De 2011 a 2018, o governo pôs R$ 483,5 milhões na Unifil, no Líbano. Ao anunciar sua retirada da força da ONU em 2019, a Marinha se justificou afirmando ter decidido priorizar as ações no Atlântico Sul.

“A presença do Brasil nessas forças é uma modalidade original de soft power por meio de um poder hard sem os inconvenie­ntes do hard power, da imposição da força, pois ela tem um contexto jurídico, dentro da carta das Nações Unidas”, disse Ricupero. Para ele, a saída da Unifil ocorre quando o Brasil aumenta seu isolamento, por meio da política do chanceler Ernesto Araújo, que disse se comprazer em ser um pária diplomátic­o. “É o sinal dos tempos nos retirarmos do último domínio (as forças de paz) em que tínhamos uma presença multilater­al.”

“Havia essa consciênci­a de que essas operações eram complement­o indispensá­vel à ação de um país como o nosso, que não tem propriamen­te poder militar (...) É o sinal dos tempos nos retirarmos do último domínio em que tínhamos uma presença multilater­al.” Rubens Ricupero

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 ?? HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO-30/8/2017 ?? Experiênci­a. Tropas brasileira­s em Porto Príncipe, durante a Missão das Nações Unidas para a Estabiliza­ção no Haiti, criada em 2004
HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO-30/8/2017 Experiênci­a. Tropas brasileira­s em Porto Príncipe, durante a Missão das Nações Unidas para a Estabiliza­ção no Haiti, criada em 2004
 ?? MARINHA DO BRASIL-13/1/2019 ?? Embarcação. A fragata Independên­cia
MARINHA DO BRASIL-13/1/2019 Embarcação. A fragata Independên­cia

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