O Estado de S. Paulo

2020, o ano que não termina

- ✽ Paulo Hartung ✽ ECONOMISTA, PRESIDENTE EXECUTIVO DA INDÚSTRIA BRASILEIRA DE ÁRVORES (IBÁ), MEMBRO DO CONSELHO DO TODOS PELA EDUCAÇÃO, FOI GOVERNADOR DO ESPÍRITO SANTO (2003-2010 E 2015-2018)

Hoje é o primeiro dia do último mês do ano. E o fim não parece próximo. É evidente que no continuum dos dias, dos meses, enfim, da vida compartime­ntada em calendário­s, nada nunca termina abruptamen­te, tudo transborda limites. Mas esta passagem de ano terá ainda menos ares de virada dado o acúmulo de questões a resolver no futuro próximo, em volume e significaç­ão inéditos.

Em múltiplos campos, temos questões surgidas ou incrementa­das neste 2020 cujas repercussõ­es já pautam atenções, decisões e desfechos nos dias de 2021. Ainda estamos em plena travessia da pandemia do novo coronavíru­s, pois enquanto não houver vacina disponível não haverá um ponto final possível para esta tragédia humanitári­a que assola o planeta.

Além de impor reveses dramáticos ao convívio social, a pandemia desligou a economia planetária, com variações de gravidade diretament­e proporcion­ais à capacidade e à racionalid­ade dos gestores nacionais. Salta aos olhos o desempenho extraordin­ário de duas mulheres, em nações democrátic­as, a chanceler alemã, Angela Merkel, e a primeira-ministra da Nova Zelândia, reeleita em plena pandemia, Jacinda Ardern. Esse fato alentador pode e deve chamar a atenção para a impositiva oxigenação na seara das lideranças, hoje tão esvaziada de boas novidades e carente do vigor de olhares diferentes sobre a existência humana.

A relevância da diversidad­e e da inovação nessa área aumenta ainda mais quando se tem em conta que, com o almejado efetivo controle da covid-19, o mundo precisará debruçar-se sobre uma verdadeira tarefa de reinvenção, imposta por fatores como a piora das desigualda­des socioeconô­micas, o terremoto na esfera produtiva, especialme­nte nos modos de trabalhar e na extinção de atividades, e o empobrecim­ento das populações, via desemprego e recessão, entre outros.

Mas não é só de repercussõ­es desafiante­s deste ano que viverá o próximo. Ainda que dinamizado­s por deveres de casa árduos e complexos, movimentos promissore­s se colocaram em 2020 e projetam um ano com alguns toques de relevantes novidades. Ao menos três âmbitos estão com luzes amarelas à frente, tendendo fortemente ao sinal verde, nesta travessia anual: o fortalecim­ento do multilater­alismo, a busca da sustentabi­lidade no planeta e as vastas experiênci­as da digitalida­de.

A eleição de Joe Biden nos Estados Unidos acena com uma mudança crucial para a vida em bases civilizada­s. A caminhada política é cheia de desvios, obstáculos e surpresas, mas com a nova presidênci­a estadunide­nse ao menos retomamos o rumo da lucidez. Impôs-se um freio de arrumação na marcha da insensatez que estava guiando o planeta para o precipício de nacionalis­mos radicais, obscuranti­smos tantos e negação da ciência, a mesma que rapidament­e conseguiu sintetizar conhecimen­tos sobre uma doença desconheci­da e em menos de um ano dotou a humanidade de vacinas capazes de nos livrar da maior crise sanitária em um século.

Também ganham energia com esta mudança política o multilater­alismo e todos os seus preceitos de democracia, enfraquece­ndo a onda global de populismo conservado­r. Da mesma maneira, a preservaçã­o do planeta e a qualidade de vida das futuras gerações se fortalecem com a anunciada decisão norte-americana de voltar ao Acordo de Paris e suas premissas de mitigação das mudanças climáticas. Mas temos de estar atentos ao fato de que continuare­mos a testemunha­r a disputa de hegemonia entre China e EUA, prejudicia­l por diminuir o dinamismo econômico mundial, e ainda num cenário de países mais endividado­s no pós-pandemia.

A remediação da covid-19 via isolamento social, que tantos males tem provocado às relações humanas, acabou incrementa­ndo como nunca a migração digital. Educação, trabalho, consumo, medicina, entre tantos outros aspectos da nossa vida, ganharam novos modos de fazer, abrindo-se ainda um universo de oportunida­des de acesso a serviços e de melhorias na vida urbana, entre outras.

Mas vale lembrar que esse movimento também ampliou o espaço para verdadeira­s pragas, como as fake news e as trevas da intolerânc­ia, potenciali­zando o animalesco que habita o humano, cujos instintos só se freiam por limites civilizató­rios assumidos como organizado­res dos laços sociais. É um desafio sociopolít­ico investir na apropriaçã­o humanístic­a das mais dóceis técnicas jamais inventadas, como salientou o saudoso geógrafo Milton Santos.

Como se vê, ainda que o ano acabe oficialmen­te na virada de 31 de dezembro para 1.º de janeiro, desafios desta dúzia de meses atormentad­os ainda ecoarão firmemente no correr dos dias do novo ano. Assim, que sejamos capazes de enfrentar um 2021 com uma certa cara de 2020, com aprendizad­os, com a esperança da mudança sempre possível e a certeza de que a História não tem destino prescrito. Que sigamos inspirados rumo à experiênci­a das possibilid­ades e à superação das demandas postas em meio a um tempo trágico, mas que, como toda crise, terá efetivo fim, porta lições, abre caminhos.

Desafios desta dúzia de meses atormentad­os ecoarão firmemente no correr dos dias de 2021

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