Apoiada pelo Planalto, rede do ódio lucra com canais antidemocracia
Investigação diz que dados usados em canais no YouTube, incentivando atos contra o STF e o Congresso, saíram de dentro do governo; ‘rede do ódio’ faturava cerca de R$ 100 mil mensais
InquéritosobreatoscontraSTFeCongressodizqueyoutubersganhamR$100milpormês Investigação sigilosa sobre a organização e o financiamento de manifestações contra a democracia mostrou que um negócio lucrativo estava por trás dos protestos contra o STF e o Congresso, informam Patrik Camporez,
Breno Pires e Rafael Moraes Moura. Informações usadas em canais do YouTube ligados ao “gabinete do ódio” saíram de dentro do Palácio do Planalto. Esses youtubers disseram que faturam pelo menos R$ 100 mil por mês com a audiência gerada pelos canais. Um deles, o Foco do Brasil, faturou US$ 330.887,08 entre março de 2019 e maio de 2020, o equivalente a R$ 1,7 milhão. Trabalhando a poucos metros do gabinete do presidente Jair Bolsonaro, o assessor especial da Presidência Tércio Arnaud Tomaz e o coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens, são os interlocutores do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, apontado como elo do governo com youtubers. Procurados, os envolvidos não se pronunciaram.
Com o objetivo de lucrar, estes canais potencializam a retórica da distinção amigo-inimigo” HUMBERTO JACQUES VICE-PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA
O inquérito sigiloso aberto em abril para apurar a organização e o financiamento de manifestações contra a democracia revela que um negócio muito lucrativo estava por trás dos protestos contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso. A investigação descobriu que informações usadas por uma rede de canais no YouTube, incentivando esses atos no País, saíram de dentro do Palácio do Planalto. Essa rede do ódio, alimentada por servidores que atuam ao lado do presidente Jair Bolsonaro, registrou faturamento em torno de R$ 100 mil mensais, chegando até a R$ 1,7 milhão, num período de dez meses.
A conclusão consta de inquérito com 1.152 páginas, ao qual o Estadão teve acesso. Após quase oito meses de diligências, as apurações mostram os elos e a convivência harmoniosa da Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) com os youtubers do “gabinete do ódio”, núcleo palaciano que adota um estilo beligerante nas redes sociais. A existência do grupo, com essa denominação, foi revelada pelo Estadão, em setembro de 2019. A poucos metros do gabinete de Bolsonaro, o assessor especial da Presidência Tércio Arnaud Tomaz e o Coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, ajudante de ordens, são os interlocutores do blogueiro Allan dos Santos, dono do canal Terça Livre, dentro do Planalto.
Tércio é apontado no inquérito como elo entre o governo e os youtubers, que possuem acesso privilegiado a Bolsonaro e informaram faturamento de mais de R$ 100 mil por mês. Integrante do “gabinete do ódio”, Tércio repassa vídeos do presidente e participa de grupo de WhatsApp com os blogueiros para “discutir questões do governo”, segundo disse em depoimento à Polícia Federal. Cid, por sua vez, admitiu que, como “mensageiro” de Bolsonaro, leva e traz recados de Allan. O blogueiro atua como uma espécie de representante das demandas dos demais canais.
A investigação feita pela Polícia Federal em inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, do STF, ainda não terminou, mas já atormenta Bolsonaro por fechar o cerco sobre a militância digital bolsonarista. Até agora, foram ouvidas mais de 30 pessoas, entre as quais o vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ), apontado como comandante do “gabinete do ódio”, e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filhos do presidente.
“A propaganda de conteúdo extremista no campo digital culmina, de fato, em ações subsequentes: as manifestações reais contra o Estado Democrático de Direito, criando um ciclo que se realimenta, com a difusão das manifestações pelos canais de internet dos produtores, que, por sua vez, são alardeados e replicados em perfis pessoais de redes sociais de agentes do Estado”, constatou a Polícia Federal, em relatório de 9 de julho.
Não passou despercebido dos investigadores que, no período dos protestos antidemocráticos, alguns deles pregando intervenção militar, com a presença de Bolsonaro, vídeos com títulos apelativos pipocaram nas redes sociais. Nessa lista estavam “Bolsonaro rebate conspiradores”, “Bolsonaro dá ultimato para sabotadores e intromissões”, “Bolsonaro invade STF”, “A Força de Bolsonaro é maior que Congresso e STF”, “Bolsonaro e Forças Armadas fechados em um acordo para o Brasil”, como registrou a Procuradoria-Geral da República (PGR).
“Com o objetivo de lucrar, estes canais, que alcançam um universo de milhões de pessoas, potencializam ao máximo a retórica da distinção amigo-inimigo, dando impulso, assim, a insurgências que acabam efetivamente se materializando na vida real, e alimentando novamente toda a cadeia de mensagens e obtenção de recursos financeiros”, disse o vice-procurador-geral da República, Humberto Jacques, em manifestação ao STF.
Levantamento do Estadão identificou que o número de inscritos de onze canais sob investigação aumentou 27% no total, de 6,7 milhões para 8,5 milhões, entre 1º de março e 30 de junho. O período coincide com o das manifestações antidemocráticas. De julho até o fim do mês passado, quando já não havia mais protestos, os canais cresceram apenas 6%.
Nos interrogatórios, a PF tem questionado se os donos de canais são “laranjas” de terceiros. Foi o que ocorreu no depoimento prestado por Anderson Azevedo Rossi. O criador do canal Foco do Brasil respondeu que não repassa dinheiro recebido de monetização do Youtube a outros. Rossi afirmou, porém, que recebe ajuda de Tércio Tomaz para abastecer a sua página.
Por meio do WhatsApp, disse ele, o assessor envia vídeos de Bolsonaro. Tércio está sempre ao lado do presidente. Filma suas conversas de forma imperceptível e procura flagrar situações que possam constranger quem o incomoda.
Guinada. Com 2,3 milhões de seguidores no Youtube, Rossi teve uma guinada na carreira desde a ascensão de Bolsonaro. Recebia um salário de R$ 3,5 mil como técnico de informática em sua cidade, Canela, no Rio Grande do Sul. Agora, com os recursos da monetização – a remuneração que o YouTube paga por anúncios publicitários nos canais – faturou com o Foco do Brasil US$ 330.887,08 entre março de 2019 e maio de 2020, o equivalente a R$ 1,7 milhão na cotação atual de câmbio.
Em depoimento à PF, Tércio negou dar tratamento diferenciado aos donos de canais no Youtube que orbitam em torno de Bolsonaro. Admitiu, porém, ter participado de grupo de WhatsApp com Allan dos Santos para discutir questões de governo.
Allan disse que recebe R$ 12 mil por mês, também obtidos por meio de monetização, segundo depoimento prestado à PF, na condição de “sócio” do Terça Livre.
Os canais Terça Livre, Foco do Brasil eVlog do Lisbo também veicularam propaganda da reforma da Previdência, paga pela Secom. A lista de canais que difunde o discurso do “gabinete do ódio” inclui, ainda, a Folha Política, de Ernani Fernandes Barbosa e Thaís Raposo, que informaram rendimento no YouTube de R$ 50 mil a 100 mil por mês.
Desde a última sexta-feira, 27, o Estadão tem pedido uma manifestação da Secom. A reportagem perguntou também se os assessores Tercio Tomaz, José Matheus Sales Gomes, Mauro Cesar Barbosa Cid e Mateus Diniz gostariam de se manifestar, já que são citados no inquérito do STF. Três e-mails foram enviados à Secom, mas não houve resposta.
• Retórica
“Com o objetivo de lucrar, estes canais, que alcançam milhões de pessoas, potencializam a retórica da distinção amigo-inimigo.”
Humberto Jaques
VICE-PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA