‘Precisamos de um plano fiscal. Perdemos a capacidade de planejar’
Economista fala em fase de transição e ‘teto de gastos 2.0’ para abrir espaço a despesas excepcionais
Saídas para a crise fiscal Felipe Salto, diretor executivo da Instituição Fiscal Independente Economista sugere a criação de um “teto de gastos 2.0” para financiar despesas adicionais com uma eventual prorrogação do auxílio emergencial e o pagamento das vacinas contra a covid-19.
Diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado, o economista Felipe Salto sugere a criação de um “teto de gastos 2.0” combinado com medidas de aumento de receitas. Décimo e último entrevistado da série do Estadão que discute saídas para a crise fiscal, Salto diz que o governo precisa colocar na mesa medidas para voltar ao azul, com superávits primários nas suas contas.
O economista defende uma ponte de transição na regra para financiar os gastos adicionais que devem surgir com uma eventual necessidade de prorrogação do auxílio emergencial em 2021 e o pagamento das vacinas para acabar com a pandemia da covid-19. “O teto não é um FLA x FLU. A regra foi positiva e teve o seu valor, mas, para que ela não seja abandonada, terá de ser adaptada. Apenas corrigir pela inflação, não vai funcionar”, diz.
Para ele, é possível ser feito um regime temporário, mantendo o teto e abrindo espaço para os gastos que vão ser necessários. A palavra chave, diz ele, é transparência. “Por isso, a meta de resultado primário das contas públicas passa a ter uma importância muito grande.”
• O sr. já disse que o teto de gastos não é a Santa Sé. O que significa isso? Estamos vivendo no Brasil um momento de muita polarização. Quando ela está fundamentada em questões técnicas e avaliações, até pode ajudar a explicitar o que as pessoas pensam e seus diferentes pontos de vista. Mas esta polarização danosa que estamos vendo acaba apenas turvando o debate e prejudicando a discussão das questões fundamentais, como é o caso das regras fiscais e do teto de gastos (regra que impede que as despesas cresçam em ritmo superior à inflação), particularmente.
• Como assim?
Tem o grupo dos que são a favor do teto e não abrem mão; e tem aqueles que dizem que se deve abandonar o teto, pois seria muito ruim. Na verdade, o que precisamos é encontrar o caminho do meio. Quando eu disse que o teto não é a Santa Sé quis dizer que aprimorar as regras fiscais é positivo. Se for possível regulamentar os gatilhos (medidas de contenção de gastos, focadas principalmente nas despesas com servidores públicos) ou pensar numa combinação de resultado primário que envolva o lado das receitas, isso seria salutar. Não adianta dizer que é a favor do teto, como o governo tem feito, se os números não fecham. Quem faz um mínimo de contas e planilhas vê que no próximo projeto de Orçamento tem uma despesa discricionária (aquelas que não são obrigatórias e incluem, por exemplo, investimentos) de R$ 108,4 bilhões. Destes, R$ 16,3 bilhões são emendas parlamentares. Se tirar essa parte, sobra algo como R$ 92,1 bilhões, que é um nível extremamente baixo. O governo precisa mostrar que esse nível é suficiente para não parar a máquina pública e paralisar as políticas que estão lá. E mais do que isso: como vai incorporar os gastos quase certos, como algum auxílio para as pessoas mais pobres e compra de vacinas.
• Esses gastos adicionais são certos? Vão ter de acontecer. E qual o espaço orçamentário? Não existe.
• Vai faltar dinheiro no orçamento para pagar vacina?
Tem alguns caminhos. Se ele (o governo) não colocar no Orçamento agora, pode fazer crédito extraordinário no ano que vem.
• Mas a necessidade de vacinas era previsível desde sempre. Se encaixa em crédito extraordinário para despesas imprevisíveis e urgentes?
Como não é uma despesa imprevisível, o ideal seria contemplar no Orçamento. Para resolver, o governo deveria abrir espaço orçamentário este ano seja pelo lado da receita ou da despesa.
• Como sair do impasse que é vivido há meses?
No grosso das despesas obrigatórias tem pouco espaço para cortar. Teria os subsídios creditícios que têm previsão de R$ 14 bilhões em 2021. Mas aí também tem programas tradicionalmente importantes, no agronegócio, por exemplo. Não tem saída fácil. A primeira coisa que o governo precisa fazer é calcular quais são as despesas extras. Nós, da IFI, fizemos uma simulação e calculamos que, se o auxílio de R$ 300 for estendido por quatro meses para um contingente de 25 milhões, o gasto seria de R$ 15,3 bilhões. Seria um pecado mortal compensar com aumento de arrecadação? Não seria. Precisa é comunicar direito.
• O Congresso precisaria aprovar uma PEC?
Eu fico um pouco pessimista porque é um assunto um pouco complexo para ser resolvido em poucos dias. A saída é claramente o governo dar uma interpretação para o acionamento dos gatilhos ou avançar na PEC emergencial (proposta em que estão previstas as medidas de contenção de gastos). Isso construiria uma ponte para ganhar tempo para discutir a questão do indexador do teto. O governo deveria dar uma solução ainda que fosse temporária para que, ao longo do próximo ano, pudesse discutir a mudança do indexador do teto (hoje, o teto é corrigido pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano anterior ao da vigência).
• Nesse caso, o que pode acontecer?
O projeto de Orçamento está completamente descolado da realidade. Vai chegar em janeiro e será preciso, necessariamente, fazer o auxílio. Vai ser uma espécie de gestão de risco. Quando chegar em 31 de dezembro, e para janeiro não tem mais auxílio, decidese fazer mais um mês. Qual a saída? Crédito extraordinário e, aí, precisa combinar com os russos. Precisa ver como o TCU vai encarar essa realização de crédito extraordinário, sendo que há alguns meses já se sabe que possivelmente esse gasto seria necessário e o governo vai argumentar que não, que estava esperando ter mais certeza sobre essa necessidade.
• A discussão de regras orçamentárias não está se sobrepondo à realidade do País?
Perdemos a capacidade de planejamento. É urgente ter um plano fiscal.
• O que é um plano fiscal na sua avaliação?
Não importa se é receita ou despesa. É preciso recuperar os resultados primários. É uma questão de expectativas, precisa mostrar um plano de aumento de receita e corte de gastos. Por isso, a meta de resultado primário das contas públicas passa a ter uma importância muito grande. Esse plano deveria comportar uma conta de cálculo da sustentabilidade da dívida, que é o que mais importa, anunciando as medidas do lado das receitas e despesas, que num conjunto possa produzir um superávit (quando as receitas superam as receitas). É fácil? Não é, mas, sem abandonar esse teto, modernizando, caminhar para um teto 2.0 e combinar isso com medidas do lado das receitas.
• O que é um teto 2.0?
Olhar para as regras fiscais, como o FMI manda fazer, e observar que uma regra que não tem válvula de escape e não permita certa flexibilidade em períodos de exceção não é a melhor. Precisamos sofisticar. O teto não é um FLA x FLU. A regra foi positiva e teve o seu valor, mas, para que não seja abandonada, terá de ser adaptada. Apenas corrigir pela inflação, não vai funcionar. Essa modernização poderia envolver a questão do indexador. Existem outras propostas como a do Fabio Giambiagi e do Guilherme Tinoco de discutir a questão dos investimentos (para criar uma espécie de “subteto” para os investimentos). Não cabe a IFI dar recomendação. Mas, quando calculamos os números, está muito claro que está impossível cumprir o teto por muito mais tempo. Talvez o governo consiga cortar a despesa discricionária por mais tempo. Não dá para imaginar que, neste contexto pandêmico, o Brasil não possa desviar um milímetro do que foi pensado em 2016.
• O que deveria ser feito?
Criar uma transição. Estou chamando de ponte. Comprar tempo, alterar as regras, temporariamente, para que a gente possa discutir um aprimoramento do teto.
• Uma pinguela?
Eu li recentemente um artigo do Gustavo Loyola (ex-presidente do BC) que disse que já está meio precificado que o teto não será cumprido em 2021. Resta saber o que vai ser o contorno que vão fazer na regra.
• É preciso esse contorno?
Entra a questão da economia política. Não podemos dar um cavalo de pau. De repente, o teto, que era uma âncora, vai ser jogado fora. Não. Tem de ter cuidado. O momento é delicado. É possível ter um regime temporário, mantendo o teto e abrindo espaço para os gastos que vão ser necessários. A palavra chave é transparência.
• O FMI fala da retirada gradual dos estímulos?
Sim, Não é razoável fazer R$ 600 bilhões (a estimativa de gastos para o combate à pandemia neste ano) e, no ano seguinte, zero. Até porque vai ter muita gente à margem do mercado de trabalho. Alguma ajuda terá de ser feita.
• Como fica o dinheiro para o pagamento das vacinas?
O governo terá de dizer se vai colocar dinheiro na vacina ou deixar tudo na mão dos Estados, como também o auxílio. Como financia essa ajuda? Falta essa diretriz. Estamos a ver navios. Não tem uma proposta. Estamos em dezembro. Não adianta mandar propostas complexas e falar que a bola está com o Congresso. Tem de sentar, negociar. Política é isso.
• A meta fiscal pode ser flexível, como foi proposto pelo governo?
A Lei de Responsabilidade Fiscal é claríssima. Meta tem de ser calculada e fixada como um compromisso a ser perseguido, a partir do esforço combinado do lado da receita e da despesa. Não pode “flutuar”.
• Já está em curso uma transição de política econômica?
Não vejo isso. O governo, na verdade, está perdido. O Paulo Guedes (ministro da Economia) é um economista que tem formação, que deve ser respeitado. Mas o que vemos, por exemplo, quando é questionado sobre a reforma? Ele volta a falar de CPMF , desoneração (redução dos encargos que as empresas pagam sobre o salários dos funcionários), coisas fora da pauta. Esse é o plano? Como vai ser feito? O Congresso já aceitou? Do lado dos gastos, ele falou em unificar os programas sociais; até agora, nada.