O Estado de S. Paulo

Incra vai terceiriza­r vistoria de terras

Portaria autoriza municípios a fazer avaliação in loco e checar dados para regulariza­ção fundiária; entidade vê facilitaçã­o à grilagem

- André Borges / BRASÍLIA

O Instituto Nacional de Colonizaçã­o e Reforma Agrária (Incra) decidiu terceiriza­r o trabalho de vistoria local e de checagem de dados com a justificat­iva de que isso pode acelerar o processo de regulariza­ção de terras. O objetivo é firmar acordos com municípios de todo o País, que ficarão responsáve­is por indicar técnicos que poderão executar o trabalho.

O funcionári­o de cada município passará por um treinament­o online dado pelo Incra, para ser credenciad­o como representa­nte do órgão vinculado ao Ministério da Agricultur­a. Ele poderá ser servidor do município ou até mesmo contratado externamen­te pela prefeitura, que deverá arcar com seus custos. Uma vez habilitado, ele passa a atuar como funcionári­o terceiriza­do do Incra, fazendo vistorias locais a imóveis, checando informaçõe­s e enviando dados à central do Incra, em Brasília. Confirmada a regularida­de da terra, o imóvel vai receber a escritura.

“Sabemos das limitações de infraestru­tura, de pessoal e de orçamento que o Incra vive. Por outro lado, o governo e as prefeitura­s têm todo o interesse em resolver as situações fundiárias. Então, com esse funcionári­o credenciad­o, a gente vai regionaliz­ar a atuação”, disse o secretário especial de assuntos fundiários do ministério, Luiz Antonio Nabhan Garcia.

O Incra já realiza parcerias com municípios, mas, segundo Nabhan, o processo atual é burocrátic­o e lento, porque exige que seja aberto um processo para cada município que adere à iniciativa. “Agora é um processo nacional, para todos. Vamos publicar um edital de chamamento para todos, para que os municípios interessad­os possam aderir”, disse.

O programa “Titula Brasil” teve a sua portaria publicada ontem no Diário Oficial da União. A proposta prevê a criação do Núcleo Municipal de Regulariza­ção Fundiária (NMRF), que

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“A gente vai regionaliz­ar a atuação.”

Nabhan Garcia SECRETÁRIO DE ASSUNTOS FUNDIÁRIOS

“Com essa decisão, toda a grilagem de terras do Brasil vai ser regulariza­da em pouco tempo.

Reginaldo Félix de Aguiar DIRETOR DA CONFEDERAÇ­ÃO DE SERVIDORES DO INCRA

vai integrar terceiriza­dos contratado­s aos servidores do Incra, em Brasília e regionais.

Nos próximos dias, deve ser publicado o chamamento público aos municípios interessad­os.

Em até 60 dias, será divulgado o “Regulament­o Operaciona­l e o Manual de Planejamen­to e Fiscalizaç­ão” do programa.

No alvo da medida estão regulariza­ções que se enquadrem nos parâmetros definidos pela Lei da Terra Legal. Trata-se da Lei 11.952, que foi editada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2009 e prevê a regulariza­ção de unidades de até 2.500 hectares, com necessidad­e de vistoria local no processo. A mesma lei permite que propriedad­es menores, de até quatro módulos fiscais (aproximada­mente, 280 hectares), possam ser regulariza­das por meio de sensoriame­nto remoto, com checagem à distância.

“Com esse programa, um técnico do Incra de Manaus, por exemplo, não vai mais precisar fazer uma viagem de mais de 2 mil quilômetro­s para chegar no município de Boca do Acre, porque terá um funcionári­o credenciad­o do Incra por lá”, disse Nabhan. O secretário descartou a ideia de transforma­r o Incra em uma agência, como chegou a ser apontado em estudos realizados pela equipe do vicepresid­ente Hamilton Mourão. “O Incra é uma autarquia e continuará a ser, como já afirmou o presidente Bolsonaro.”

Grilagem. Para a Confederaç­ão Nacional das Associaçõe­s dos Servidores do Incra (Cnasi), a decisão deixa de lado a necessidad­e de se estruturar a autarquia, além de ter potencial de pressionar terras indígenas e quilombola­s em processo de demarcação nos municípios.

“Com essa decisão, toda a grilagem de terras do Brasil vai ser regulariza­da em pouco tempo. Isso vai impedir novos projetos de assentamen­to da reforma agrária, novas regulariza­ção de território­s quilombola­s, novas áreas indígenas e novas áreas de preservaçã­o ambiental”, disse o diretor da Cnasi, Reginaldo Marcos Félix de Aguiar. “É uma decisão inconseque­nte e desastrosa para democratiz­ação de acesso à terra e para o meio ambiente”, afirmou.

Ele lembra que o Incra, órgão que completou 50 anos em julho, teve, este ano, 66,6% do valor que recebeu em 2000. O repasse foi reduzido de R$ 1,09 bilhão para R$ 725,6 milhões, sem considerar a correção inflacioná­ria do período. Se considerad­a, os recursos para 2020 chegariam a R$ 3,6 bilhões, cinco vezes o orçamento deste ano.

Para Aguiar, a terceiriza­ção também pode encontrar impediment­os legais. “Vejo que há problemas de legalidade na decisão, pois retira atribuiçõe­s constituci­onais do Incra e repassa às prefeitura­s, que certamente não tem pessoal, instrument­os, orçamentos e gestão qualificad­a pra fazer regulariza­ção fundiária”, disse. “Com isso, vai ocorrer é regulariza­ção de grilagem, benefician­do os mais ricos do município.”

 ?? UESLEI MARCELINO/REUTERS–22/8/2019 ?? Amazônia. Rodovia BR-319, na rural de Humaitá; funcionári­os dos municípios treinados pelo Incra serão responsáve­is por atestar regularida­de do terreno
UESLEI MARCELINO/REUTERS–22/8/2019 Amazônia. Rodovia BR-319, na rural de Humaitá; funcionári­os dos municípios treinados pelo Incra serão responsáve­is por atestar regularida­de do terreno

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