O Estado de S. Paulo

Tá lá um corpo

- ELENA LANDAU ELENA.LANDAU@EUSOULIVRE­S.ORG E-MAIL: ✽ ECONOMISTA E ADVOGADA

Asemana foi dominada pelas análises das eleições. Não sou analista política, sigo os entendidos. Dizem que as urnas mandaram muitas mensagens, entre elas, que a democracia saiu mais forte e que o eleitor rejeitou os extremos. Bolsonaro e PT teriam sido os grandes derrotados, levando junto a radicaliza­ção. Foi celebrado o nível dos debates e o caminho do centro.

São Paulo parece estar influencia­ndo as conclusões. Covas e Boulos lembraram que é possível discordar sem agredir. O oponente deixa de ser o inimigo e volta a ser apenas um adversário político. Foi bonito de se ver. Mas os debates pelo País afora não me convencera­m muito que uma nova ordem se estabelece­u. De Recife, onde uma família se desfez, ao Rio, onde as mentiras e agressões dominaram, as campanhas não foram tão elegantes. Nas redes, a militância continua agressiva. A tolerância com ideias divergente­s está ainda perto de zero. Ataques racistas a vereadoras e vereadores negros e piadas misóginas também não faltaram.

Outra razão para otimismo seria a derrota pessoal de Bolsonaro. A preocupaçã­o com a segurança pública das eleições de 2018 cedeu lugar à preocupaçã­o com a saúde. Tratar a crise da covid-19 como gripezinha pagou seu preço.

Não estou convencida disso. Afinal, o Centrão, base do governo, cresceu muito nestas eleições. A velha política está mais viva do que nunca. O presidente pode ter se tornado seu refém em definitivo ou, apenas, ter reencontra­do seu hábitat natural. Se sobreviver aos próximos dois anos, vem com tudo.

Gostaria de estar mais convicta de que a carreira de Bolsonaro acabou. É um presidente que, como sempre nos lembra o mestre Gabeira (cada dia melhor em seus comentário­s), tem um pacto com a morte. Mudança nas leis de trânsito, afrouxamen­to no controle de armas, apreço pela tortura, negação da pandemia e desmatamen­to formam um abraço com o lado sombrio da Força. A falta de empatia deste governo é terrível. Parece estar afetando a população.

Estava começando a escrever a coluna quando dei de cara com a imagem, no jornal, de um corpo largado no chão de uma padaria. Eu já não estava vendo o copo tão cheio assim e a foto me paralisou.

Era uma manhã em Ipanema, como outra qualquer. Um homem entra em uma padaria tossindo sangue e implora por ajuda. Funcionári­os e clientes continuara­m nos seus afazeres. O homem morre. Carlos Eduardo, o Macaquinho, era um morador de rua, rosto conhecido pela vizinhança. Mas lá ficou, estendido no chão. Sem pressa, foi cada um pro seu lado.

Como explicar que pessoas continuass­em a tomar seu cafezinho com pão na chapa, enquanto o corpo de Carlos Eduardo, coberto por um saco de lixo, permanecia no chão? Invisível na vida e invisível na morte. Que gente é essa? Em que país nos transforma­mos?

Os anos de raiva e polarizaçã­o nos fizeram perder o rumo. Antes de fazer projeções para 2022, especular sobre a nova esquerda, a frente ampla ou o centro democrátic­o, eu gostaria de entender que país queremos ser. Onde foi que nos perdemos e como vamos nos recuperar. Ainda tenho a esperança de ver uma campanha em torno de uma agenda positiva. Cansei do voto útil. Mas estamos novamente buscando nomes em lugar de ideias ou projetos para a nação Brasil.

Éramos conhecidos mundialmen­te pela nossa afetividad­e, alegria e solidaried­ade. Mesmo que muitas vezes de forma caricatura­l, os brasileiro­s eram celebrados pela música, pelo melhor futebol do mundo, pelo carnaval e pela natureza diversa e exuberante. Na economia, fizemos o mais famoso plano de estabiliza­ção, o Real, e criamos uma das melhores políticas de transferên­cia de renda do mundo, o Bolsa Família.

Hoje, viramos chacota e ficamos constrangi­dos com nossa participaç­ão em fóruns internacio­nais, como Davos, ONU e G-20. Não visto mais a camisa verde-amarela da seleção. Não por conta do péssimo futebol que Tite nos oferece, mas pelo constrangi­mento de ser vista como uma nacionalis­ta-bolsonaris­ta. Nosso patriotism­o anda envergonha­do, porque passou a ser confundido com nacionalis­mo.

Há muitos anos, George Orwell escreveu que o patriotism­o é a “devoção a determinad­o lugar particular e a determinad­o modo de vida, mesmo quando se acredita que sejam os melhores do mundo, não se tem vontade de os impor aos outros. De outro lado, o nacionalis­mo é inseparáve­l da avidez pelo poder”. E carregado de ódio ao vizinho.

Os anos de raiva e polarizaçã­o nos fizeram perder o rumo

SEG. Luiz Carlos Trabuco Cappi (quinzenalm­ente) | TER. Ana Carla Abrão, Pedro Fernando Nery e Demi Getschko (quinzenalm­ente)| QUA. Fábio Alves | QUI. Zeina Latif | SEX. Elena Landau (quinzenalm­ente) e Pedro Doria | SAB. Adriana Fernandes | DOM. José Roberto Mendonça de Barros (quinzenalm­ente) e Affonso Celso Pastore (quinzenalm­ente); Paulo Leme (1º domingo do mês), Roberto Rodrigues (2º domingo do mês), Albert Fishlow (3º domingo do mês) e Gustavo Franco (último domingo do mês)

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