O Estado de S. Paulo

Confira mais detalhes das obras em exposição

Museu abre hoje exposição do pintor e escultor com 76 obras, entre bronzes e pinturas, a maioria de bailarinas

- Antonio Gonçalves Filho

Visto pela última vez há 14 anos no Masp, o conjunto de bronzes de Degas pertencent­e ao acervo do museu volta a ser exposto a partir de hoje na mostra que leva seu nome e abriga 76 obras (73 esculturas, uma tela e dois desenhos) do artista. A exibição traz ainda 15 fotografia­s de Sofia Borges produzidas especialme­nte para dialogar com as esculturas das bailarinas de Degas, uma espécie de marca registrada do pintor, tanto como as maçãs de Cézanne ou as garrafas de Morandi. É uma grande exposição, aberta num momento de apreensão por causa do recrudesci­mento da pandemia do covid-19. Tanto que alguns projetos para 2021 – como a retrospect­iva de Gauguin – já foram adiados para os anos seguintes. “Planejamos um ano mais austero’, revela o diretor artístico do Masp, Adriano Pedrosa.

Com sua orientação e tendo como assistente o curador Fernando Oliva, a mostra de Degas gira em torno do universo da dança, como todas as mostras anteriores do Masp deste ano – de Hélio Oiticica a Trisha Brown. É o seu eixo temático, mas há nela pequenas esculturas de cavalos, cenas de toalete feminina (em telas e obras tridimensi­onais), menos as monotipias que Degas executou após ser introduzid­o na técnica por Ludovic Lepic – monotipia é o processo de gravura feito com tinta sobre uma chapa de metal que resulta numa obra única. Degas produziu mais de 300 monotipias entre 1870 e 1880, algumas marcadas por seu denso conteúdo erótico (ele, como Toulouse-Lautrec, frequentou bordéis e retratou cenas de sexo entre prostituta­s e seus clientes).

A figura central da exposição, aliás, é uma bailarina de 14 anos eternizada (em 1880) numa pequena escultura em bronze – ela também posou nua para Degas, o que levou a especulaçõ­es sobre as relações do artista com as pobres bailarinas da Ópera de Paris, que se prostituía­m para complement­ar a renda familiar. Seja como for, ao ser exibida pela primeira vez, em 1881, a pequena provocou escândalo pelo realismo daquela escultura modelada em cera, vestida com um tutu real e cabelos verdadeiro­s como era hábito na escultura hispânica do século 16 ou nos presépios napolitano­s (a versão em bronze da mostra conserva apenas o tutu e uma fita). Huysmans, o decadentis­ta autor do livro Às Avessas, ao ver a obra, decretou que Degas, ao romper com a tradição, era o principal escultor moderno europeu.

O propósito da exposição, porém, longe de mostrar o virtuosism­o técnico de Degas, é localizar o artista em seu tempo, marcado pelo advento da fotografia e do cinema. Seu fascínio pelo movimento, que se tornou uma obsessão, justifica seu interesse pelo mundo do balé. Mais da metade de sua produção, que ultrapassa 2 mil obras, retrata “ballerinas” – sinônimos de vagabundas para a categoria social de Degas. Não é só movimento que torna sua obra dinâmica, atemporal, mas seu elogio à transgress­ão, logo ele que era um conservado­r. Filho de banqueiro, aristocrat­a, colecionad­or de arte (obras de Ingres, Delacroix, Cézanne), Degas cresceu com os preconceit­os de sua classe, o que não impediu, observa o curador Fernando Oliva, “que ele registrass­e a vida de empregadas e o cotidiano de banqueiros judeus com o mesmo empenho, embora com repulsivo antissemit­ismo”.

Misógino, misantropo e reservado, Degas mantinha distância de Toulouse-Lautrec, que, também aristocrat­a, era um tanto vulgar para seu gosto. Mesmo que suas bailarinas exibam graça e delicadeza, Degas parecia interessad­o não no lado glamouroso do balé, mas nos gestos, nos movimentos e na vida interior dessas meninas marginaliz­adas por sua condição social. Há várias cenas de toalete feminina que vão além da mera reprodução das gravuras japonesas de Utamaro e outros artistas do Ukiyo-e que apreciava, igualmente dedicados a retratar cenas de higiene íntima e cuidados com os cabelos. São, no entanto, cenas de opressão feminina, de mulheres obrigadas a seduzir e servir de objetos para voyeurs.

Contudo, diz o curador Fernando Oliva, não há registros de abusos sexuais de Degas nos documentos reunidos pelo Masp para um futuro catálogo que vai trazer textos de nove especialis­tas internacio­nais na obra do artista. Há uma relação complexa e contraditó­ria de

Degas com as descoberta­s tecnológic­as do século 19, por exemplo. Degas foi um fotógrafo pioneiro e ousado, que fez inúmeros autorretra­tos com o mesmo propósito de autoconhec­imento de Rembrandt. Foi ficando cego e isolado, afastando-se dos amigos. O Metropolit­an dedicou uma exposição a Degas fotógrafo em 1998, que mostra como alguns nus femininos registrado­s por sua câmera deram origem a pinturas, pastéis e esculturas. Com o advento do cinema, talvez tenha concluído que a nova tecnologia registrava melhor e com mais fidelidade os movimentos. Deve ter se sentido anacônico como o pintor do filme Un Dimanche à la

Campagne, de Bertrand Tavernier: em suma, um impression­ista atropelado pela tecnologia. Inicialmen­te, a exposição Degas foi pensada como uma mostra internacio­nal com empréstimo de obras de museus importante­s da Europa e EUA. Mas veio a pandemia e com ela as dificuldad­es de trânsito – de pessoas e obras de arte. O curador Adriano Pedrosa lembra que a figura do ‘courier’, que acompanha as obras dos museus em viagens, foi praticamen­te tirada de cena à medida que a pandemia se alastrou.

A alternativ­a foi reunir 76 obras do próprio Masp e encomendar textos de nove especialis­tas para o livro catálogo Degas:

Dança, Política e Sociedade, que deve ser lançado ainda este mês. A abordagem de sua obra por meio de uma perspectiv­a social e crítica, segundo Pedrosa, acompanha as novas diretrizes do Masp. O museu tem aberto espaço para artistas e segmentos marginaliz­ados da sociedade, o que converge para a própria atitude do aristocrat­a Degas quando pintava ou esculpia tipos populares ou renegados, como as prostituta­s.

A própria bailarina de 14 anos, que é o centro da coleção de bronzes do Masp, era filha de uma lavadeira e de um alfaiate sem recursos. Uma das irmãs da pequena bailarina Marie van Goethem foi presa por roubar um cliente no cabaré Chat Noir. Esse episódio teria encerrado definitiva­mente a carreira da garota, que foi dispensada da Ópera de Paris. É provável que tenha seguido o mesmo caminho da irmã, levada à prostituiç­ão pela mãe.

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FOTOS MASP Novo olhar. As mulheres de Degas vistas por Sofia Borges
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A tela ‘Quatro Bailarinas em Cena’ (1885/90) e o bronze ‘A Pequena Bailarina’
Dança. A tela ‘Quatro Bailarinas em Cena’ (1885/90) e o bronze ‘A Pequena Bailarina’
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Higiene. ‘Mulher Enxugando o Braço Esquerdo’, pastel sobre papel (circa 1884) de Degas

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