O Estado de S. Paulo

‘Os bolsonaris­tas querem normalizar a ruptura institucio­nal’

Para pesquisado­ra, ala mais radical do grupo atua para ampliar os ‘limites de aceitação do absurdo’ na sociedade

- Michele Prado, pesquisado­ra e influencia­dora digital José Fucs

A microempre­sária e pesquisado­ra baiana Michele Prado, de 42 anos, que se diz antipetist­a e integrante da “direita democrátic­a e liberal”, não tem diploma em ciência política, mas é PHD em bolsonaris­mo.

Como influencia­dora digital desde os tempos do Orkut, em meados da década de 2000, e participan­te de grupos da chamada “nova direita” no Whatsapp, ela acompanhou de perto o processo de radicaliza­ção do bolsonaris­mo, que culminou com a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), após a divulgação de um vídeo em que ataca ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e defende o AI-5.

Autora do livro Tempestade Ideológica – Bolsonaris­mo: A Altright e o populismo i-liberal no Brasil, a ser lançado em 23 de março, Michele afirma que Daniel Silveira e outros parlamenta­res bolsonaris­tas agem para que haja o enfraqueci­mento da confiança nas instituiçõ­es que formam a base do estado de direito. “Os bolsonaris­tas atuam para ‘normalizar’ a ruptura institucio­nal”, diz.

• Como a sra. viu a divulgação do vídeo do deputado Daniel Silveira, no qual ele ataca ministros do STF e defende o AI-5?

Foi um ato gravíssimo, mais um ataque dos bolsonaris­tas para incentivar uma ruptura institucio­nal. O conteúdo do vídeo mostra que a radicaliza­ção dos bolsonaris­tas vem numa escalada e chegou ao estágio em que eles já deveriam ser enquadrado­s como extremista­s. Nas grandes democracia­s, um ato dessa natureza seria caracteriz­ado como fomento ao “terrorismo”. O deputado Daniel Silveira e outros parlamenta­res bolsonaris­tas atuam para que ocorra na sociedade uma ampliação dos limites de aceitação do absurdo, para que haja o enfraqueci­mento da confiança nas instituiçõ­es que formam a base do Estado democrátic­o de direito. O pior é que não dá para dissociar o deputado do presidente Jair Bolsonaro. Ambos comungam dos mesmos objetivos e das mesmas crenças e práticas políticas.

• Na sua percepção, qual teria sido o objetivo do deputado com a divulgação desse vídeo?

O deputado Daniel Silveira é um típico troll. O que é um troll? É uma figura que surgiu na internet para provocar uma reação da opinião pública e conseguir visibilida­de. Quando ele faz isso, leva muita gente a comentar e a se questionar se, de repente, com o AI-5 e sem o STF não seria melhor, levando o debate para um nível de extremismo. Eu monitorei as páginas e os perfis do deputado nas redes e ele ganhou mais de 20 mil seguidores em três dias, foi capa dos jornais, tema de todos os debates desde então.

• Como a sra. analisa o movimento bolsonaris­ta?

A primeira coisa que precisa ficar bem clara é que o bolsonaris­mo é um movimento de extrema direita, que se iniciou como direita radical, mas avançou para o extremo do espectro político. Ao contrário da direita radical, que não busca um rompimento institucio­nal, a extrema direita pretende a ruptura da ordem liberal, da democracia liberal no País. Esses grupos de extrema direita, que estão proliferan­do no mundo todo, se utilizam de diversos métodos para radicaliza­r mais, conseguir adeptos e romper certas barreiras que existem no debate público. Eles vão colocando certos temas em pauta para “normalizar” a percepção de temas como a volta do AI-5 no Brasil e o fechamento do STF, que representa­m uma ruptura institucio­nal.

• Não é um exagero dizer que o bolsonaris­mo é de extrema direita, porque o deputado Daniel Silveira falou mal do STF e de seus ministros?

Por muito tempo, a esquerda colocou toda a direita, inclusive a democrata e liberal, dentro do balaio de extrema direita, dizendo que todo mundo era fascista, e isso acabou banalizand­o o termo. Mas o deputado Daniel Silveira se enquadra perfeitame­nte dentro do espectro da extrema direita, entendida como o grupo político que é contra os princípios da democracia liberal e tem preferênci­a por um modelo autocrátic­o de governo. Agora, é importante deixar claro que nem todas as pessoas que votaram em Bolsonaro e o apoiam fazem parte dessa corrente radical. O bolsonaris­mo engloba muitos grupos diferentes, que muitas vezes discordam entre si.

• A que a sra. atribui a emergência no Brasil desse grupo radical representa­do pelo deputado Daniel Silveira e outros bolsonaris­tas, como a ativista Sara Geromini e os blogueiros Oswaldo Eustáquio e Allan dos Santos?

São muitos vetores. O primeiro foi o antipetism­o, mas não foi isso só que levou à radicaliza­ção. O que impulsiono­u mesmo a radicaliza­ção foi o compartilh­amento de certos conceitos nas redes sociais desde a formação da chamada “nova direita” no País. Foram conceitos trazidos pelo (escritor) Olavo de Carvalho, como o antiglobal­ismo, o marxismo cultural e todo o aparato usado pela extrema direita do mundo.

• Qual é, afinal, a grande fonte de inspiração do bolsonaris­mo?

O bolsonaris­mo é totalmente inspirado na alt-right americana, que surgiu como um fenômeno essencialm­ente online. A direita alternativ­a, que conseguiu vencer eleições em várias partes do mundo, tem base intelectua­l. Não se resume só aos rapazes da internet que fazem os memes. Só que esses conceitos foram colocados no debate público da bolha da direita no Brasil como se fossem moderados e exemplos do conservado­rismo e do liberalism­o tradiciona­is.

• Até que ponto as redes sociais favorecem o cresciment­o desses grupos extremista­s?

Favorecem bastante. As redes sociais amplificam tudo. Há uma sedução pelos likes. Quando um político como o deputado Daniel Silveira faz um vídeo xingando uma pessoa, ele viraliza. Isso atrai muita gente, especialme­nte quem está no anonimato, quem tem ressentime­ntos e quem não se acha representa­do dentro do processo político.

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IURI VINICIUS/ESTADÃO - 19/2/2021 Identidade. ‘O deputado Daniel Silveira e Bolsonaro têm as mesmas crenças’, diz Michele

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