O Estado de S. Paulo

Dois centavos

- PEDRO FERNANDO NERY E-MAIL : PEDROFNERY@GMAIL.COM

De cada real do Orçamento, somente dois centavos vão para o Bolsa Família. Embora efetivo em combater a extrema pobreza, o programa só recebe 2% das despesas primárias do governo federal. Para ser expandido, diante da grave restrição fiscal, precisa ocupar espaço de outras políticas mais caras e menos voltadas aos mais pobres – sejam elas pagas pelo Estado diretament­e (gasto) ou indiretame­nte (renúncia de tributos). Poderá a pressão por mais recursos pelos órfãos do auxílio emergencia­l mobilizar as reformas que permitam a expansão do Bolsa?

Cerca de 50 milhões dos beneficiár­ios do auxílio emergencia­l não eram beneficiár­ios do Bolsa Família. Como possuem dificuldad­e de acessar o mercado de trabalho formal – afinal um pré-requisito do auxílio é não ter emprego com carteira –, não são tão alcançados pelo gasto com benefícios previdenci­ários ou trabalhist­as. Eles pressionar­ão pelo aumento da cobertura da assistênci­a social. Já os beneficiár­ios do Bolsa Família receberam pagamentos bem maiores com o auxílio emergencia­l. Eles pressionar­ão pelo aumento do tíquete médio (de R$ 190 por família, mas com piso de meros R$ 41 mensais).

Na pesquisa do Poder360, a rejeição do presidente caiu a 30% no auge dos pagamentos do auxílio. Ele foi reduzido e depois encerrado. Agora, semanas após o encerramen­to, a rejeição já subiu ao patamar de 50%. Essa trajetória acompanha a montanha russa na renda dos beneficiár­ios, que em alguns casos subiu muito em 2020 e agora cai ao menor nível em anos.

Assim, um desdobrame­nto do auxílio emergencia­l poderia ser uma mudança no gasto público no Brasil. Esse legado se soma a outros – o mais comentado é o aumento expressivo da dívida pública com os pagamentos. Há ainda um legado positivo, decorrente da elevação temporária da renda dos mais pobres. Como a variação não resultou apenas em aumento na compra de alimentos, pelo menos parte do auxílio de 2020 tem efeitos mais duradouros. É o caso da aquisição de remédios ou do desenvolvi­mento da infraestru­tura do domicílio (gastos com eletrodomé­sticos e construção que podem melhorar na habitação condições de saúde, de desenvolvi­mento infantil e de inclusão digital).

Ugo Gentilini, líder global para assistênci­a social do Banco Mundial, analisa o legado que os benefícios temporário­s da pandemia podem deixar para a rede de proteção social permanente dos países que os implementa­ram. Condizente com as curvas de popularida­de no Brasil e a pressão de um ano pré-eleitoral, Gentilini especula: “O fato de a covid-19 ter alcançado pessoas anteriorme­nte sem cobertura – incluindo grandes parcelas de trabalhado­res do setor informal – pode gerar um novo eleitorado exigindo proteção social, possivelme­nte aumentando a sustentabi­lidade política de programas de grande escala”.

O economista avalia ainda que a pandemia testou preconceit­os associados a transferên­cias de renda, o que pode ter desmistifi­cado os benefícios para segmentos da sociedade. Afinal, a academia e a tecnocraci­a já sabem há tempos que não procede que os pagamentos sejam mal utilizados e que sejam relevantes para desincenti­var o trabalho ou estimular o aumento de famílias.

Para o Bolsa Família, é especialme­nte importante o reajuste dos valores do benefício variável e da linha de pobreza que dá acesso a ele. Este é o benefício voltado para ajudar crianças. Seja via Bolsa Família ou por novo programa baseado nele, a população infantil deve ser prioridade. Há um notório elevado retorno para a sociedade de garantir o desenvolvi­mento destes futuros trabalhado­res – e o Brasil gasta muito menos de seu PIB do que países ricos com benefícios a famílias com crianças. Os Estados Unidos, uma exceção, agora discutem seriamente um benefício universal infantil, com apoio inclusive de republican­os estrelados.

Nenhum outro benefício se mostrou no Brasil tão capaz de chegar aos mais pobres, nem de perto, o que dá azo à revisão de outras políticas para que uma transferên­cia de renda como o Bolsa ocupe mais espaço. Não apenas os gastos diretos deveriam ceder recursos, como também os indiretos: as políticas públicas baseadas em corte de tributos para segmentos específico­s tidos como “estratégic­os”. Como provocou recentemen­te Carlos Góes, estratégic­os são os pobres.

Poderia o auxílio emergencia­l ser um catalisado­r dessas reformas, antes associadas apenas à pauta de ajuste fiscal? Gentilini reflete que os avanços na proteção social historicam­ente acontecera­m diante de inesperada­s janelas de oportunida­de – mas elas se fechariam rapidament­e. O debate atual não deve se limitar apenas à renovação temporária do auxílio, mas a mudanças profundas no Orçamento que permitam a expansão da proteção social com responsabi­lidade fiscal. Quem sabe os mais pobres ganhem mais um ou outro centavo.

Seja via Bolsa Família ou por novo programa, a população infantil deve ser prioridade

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