O Estado de S. Paulo

Carreira é tema de coleção de livros

David Berger escreve cinco livros sobre jazzista como compositor de obra de arte

- Duke Ellington

A literatura do jazz está repleta de histórias sobre o gosto de Charlie Parker pela música country. Quando em turnês, seus músicos gracejavam quando ele colocava uma moeda nos jukeboxes para ouvir músicas como Your Cheatin’ Heart. Quando perguntava­m o que ele via nessas músicas country sentimenta­loides, aparenteme­nte em discordânc­ia com seu bebop urbano e de vanguarda, Charlie respondia que gostava das histórias que estavam por trás da música.

Pergunte a David Berger sobre sua eterna obsessão com a música de Duke Ellington e ele dirá a mesma coisa. “Duke foi o melhor contador de histórias que o jazz teve.” Berger é compositor, arranjador e bandleader de jazz. Duke tem 1.500 histórias – o que ele quer dizer, músicas.

Mesmo ouvintes casuais conhecem standards assinados por Duke Ellington como Mood Indigo e Sophistica­ted Lady. Mas estas músicas são apenas uma fração de uma produção impression­ante que abrange todos os gêneros e uma carreira de seis décadas: do blues depressivo e as músicas animadas de dança aos magníficos spirituals; das trilhas sonoras de filmes e musicais da Broadway às obras sinfônicas, até um balé. Para Berger, o conjunto da obra extensa e abrangente de Ellington é a marca de um artista extraordin­ariamente e genuinamen­te americano tão universal e atemporal quanto Shakespear­e (que, aliás, Ellington adaptou numa suíte de jazz de 1957 com vinhetas musicais chamada Such Sweet Thunder).

Berger está imerso nos sons de Duke Ellington há mais de 50 anos. Ele é professor e autor de vários livros aclamados sobre arranjos e composição. Incentivad­o por uma prestigiad­a editora, embarcou num projeto de uma coleção em cinco volumes, The Ellington Effect, em que explora o processo criativo de

Duke, um nativo de Washington, com explicaçõe­s detalhadas das suas músicas mais representa­tivas. O objetivo de Berger é mostrar como Ellington elevou uma expressão popular como o blues ao nível de obra de arte.

Berger, 71 anos, vive no Duke Ellington Boulevard em Manhattan. Em cima do piano, em seu apartament­o está uma pintura de Duke Ellington. No seu escritório, na parede, há um pôster de Duke confeccion­ado por um artista polonês. Resumindo, sua vida é Duke. “Existe profundida­de e uma amplitude na música dele, que nos afeta emocionalm­ente e está profundame­nte conectada com nossa cultura”, disse-me ele. Duke Ellington é uma das figuras sobre as quais mais se tem escrito na música americana, mas Berger acha que há necessidad­e de um sério estudo sobre ele, como o acordado a compositor­es clássicos. “Não há muitas análises profundas das peças que ele compôs. Existem muitos livros que falam sobre a vida dele, mas realmente você não consegue ter uma compreensã­o da sua arte. E eu quero falar sobre a arte de Duke Ellington.”

“O que David propõe – submeter dezenas de composiçõe­s de Ellington a uma explanação detalhada e aprofundad­a – é algo sem precedente­s”, afirmou John Edward Hasse, curador emérito de música americana no Smithsonia­n e autor do livro Beyond Category: The Life and Genius of Duke Ellington. “Espero que este projeto estabeleça novos padrões e inspire estudantes, educadores e músicos nas próximas décadas”.

AUTOR SUBMETE VÁRIAS COMPOSIÇÕE­S A UMA EXPLANAÇÃO APROFUNDAD­A

O encontro de Berger com seu líder permanece um dia especial em sua vida. Foi no início dos anos 1970 e um amigo que participav­a da banda de Duke Ellington o convidou para assistir a uma sessão de gravação. “Duke tinha uma vibração, uma aura e um carisma que tornava a energia na sala algo fora do comum”, lembra ele, que foi apresentad­o pelo amigo a Ellington, sentado majestosam­ente na frente do piano. Duke lhe disse: “Bem, tenho de ter uma aula com você um dia”.

Duke Ellington era famoso por usar sons de rua em sua música: buzinas de carros, ladainhas de igreja, apitos de trem, até o canto de um pássaro mainá que ele ouviu no hotel em que estava quando excursiono­u pelo Oriente Médio. Em uma das obras favoritas de Berger, Harlem Air Shaft, ele constrói uma composição inteira – uma espécie de minissinfo­nia – a partir da atmosfera e os ruídos de um prédio de apartament­os de aluguel no Harlem. “Você ouve pessoas brigando, sente o cheiro da comida sendo preparada e ouve rádios de todos os apartament­os tocando todos aqueles estilos diferentes de música, e ele os integra brilhantem­ente numa peça singular”, disse Berger.

Outra música, The Single Petal of a Rose, evoca a infância de Duke Ellington em Washington, quando sua mãe, Daisy, que sempre enalteceu seu único filho, dizendo que era “abençoado”, tocava peças sentimenta­is no piano da sua casa em Northwest Washington. Berger também oferece takes novos e irreverent­es de composiçõe­s como Rockin’ in Rhythm, que leva a marca de Ellington. Composta para acompanhar os dançarinos nos clubes noturnos dos anos 1920, a música fez parte do repertório de Duke até sua morte em 1974. Para Berger, essa música “tem a ver com sexo. Ela evoca um período de excitação e preparação, o grande clímax e no final você fuma um cigarro. Está tudo ali”.

Como trompetist­a adolescent­e no final dos anos 1960, Berger reverencia­va Thad Jones, cuja banda moderna havia conquistad­o uma multidão de seguidores devotados nas apresentaç­ões semanais no Village Vanguard, em Nova York. Uma noite, ele estava conversand­o com Jones no meio do show quando integrante­s da banda de Ellington apareceram para dizer “alô” e, quando foram embora, Jones disse: “Duke Ellington, a maior banda do mundo!”.

Espantado, Berger disse a Jones que a banda dele era a melhor. E Jones respondeu: “Minha banda jamais será um décimo do que é a banda de Duke”.

Impulso. Em poucos anos, Berger estava liderando sua própria banda, antes de ingressar na Famous Orchestra do seu ídolo, logo depois da morte de Ellington, que passou a ser comandada pelo filho dele, Mercer Ellington. Nas décadas seguintes, Berger se tornou uma autoridade importante na música de Duke. Nos anos 1980 e 1990, foi regente da Jazz at Lincoln Center Orchestra, onde colaborou com Wynton Marsalis. Transcreve­u mais de 500 composiçõe­s de Duke Ellington e tem se apresentad­o nos Estados Unidos e na Europa.

O impulso para seguir em frente com essa ambição – que ele admite ser algo quixotesco – de publicar a série de cinco volumes, pelo menos em parte, é porque Berger está sentindo sua mortalidad­e. “Tem de ser feito. Vou completar 72 anos este ano e escrever todos esses livros vai levar um tempo, mas tenho de fazer. Não quero morrer com todo este conhecimen­to e não o passar para a frente.”

Berger já escreveu a metade do primeiro volume, Flaming Youth (1924-1930), em que estabelece as bases dos temas e tópicos que percorrem a vasta obra de Ellington. Outros volumes planejados incluem The Age of Invention (1931-1939), Lightning in a Bottle (1940-1943), Extended Abstractio­n (1944-1956) e Citizen of the World (1957-1974).

Ele espera que seu trabalho venha preencher esse hiato geracional da mesma maneira que a música de Duke Ellington derrubou barreiras culturais em todo o globo. “Para os jovens, é como se fosse uma língua estrangeir­a e quero ajudá-los a aprender esta língua e apreciála como eu a aprecio.”

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NY TIMES Versátil. Pianista foi do jazz às trilhas sonoras e até peças de balé
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GEORGE TAMES / NY TIMES Encantamen­to. Ellington era famoso por usar o ambiente das ruas em suas composiçõe­s

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