O Estado de S. Paulo

O DESEJO DE UMA NOVA VIDA

Pandemia encoraja brasileiro a pôr planos em prática.

- Gonçalo Júnior

Com a perfeição de quem se debruça sobre o mesmo ofício há 28 anos, a manicure Maria do Socorro capricha na francesinh­a da última cliente do dia no Club N Salão, em Moema, zona sul de São Paulo: a pontinha das unhas ganha uma faixa branca. No fim do expediente, pega dois ônibus para chegar em casa, na Vila Leopoldina, na zona oeste. Ela vai feliz. É aí que seu dia começa de verdade.

A manicure também canta e compõe letras de samba e MPB. Durante a pandemia, a cearense de Juazeiro do Norte está virando sua rotina de cabeça para baixo. Aos 47 anos, Maria do Socorro passa por um novo batismo para ser a cantora Maria Sol.

Em algum momento desta longa pandemia, você já se deve ter perguntado: “E se eu mudasse o rumo da minha vida?”. Este período de exceção, que para nós já dura um ano, colocou vários pontos de interrogaç­ão na nossa cabeça. Em maior ou menor grau, muita gente está revendo o que considera mais importante.

Muita gente mesmo. Pesquisa da consultori­a global de estratégia Oliver Wyman, com dados revelados com exclusivid­ade no Brasil pelo Estadão, aponta que quase metade da população, ou 44% dos brasileiro­s, estabelece­u novas prioridade­s após a explosão do coronavíru­s.

O levantamen­to vem sendo realizado em dez países, incluindo o Brasil, com dados coletados em fases desde agosto. Foram ouvidas mais de 43 mil pessoas no mundo todo, com cerca de 4 mil em cada nação. Na média dos demais países, o porcentual dos que dizem que a pandemia ajudou a reavaliar o que é realmente importante é menor: 37%. Esses números grandões são feitos de partículas individuai­s e tangíveis.

Em 2020, Maria Sol fez oito músicas em parceria com o compositor Antônio Modesti. Suas apresentaç­ões também estão no Youtube, mas os números são modestos, de quem está começando mesmo. A mais popular tem quase 5 mil visualizaç­ões. O próximo passo, ela conta, é o lançamento das canções na plataforma de streaming Spotify.

A mudança de vida não é uma regra, depende da realidade de cada pessoa. Além disso, o peteleco dado pela pandemia nem sempre é essa guinada, 8 ou 80. O mergulho pode ser um estímulo para viver a mesma vida, mas de um jeito diferente. Em outros casos, é preciso fazer novas escolhas a partir de um contexto distinto.

No livro Apollo’s Arrow: the Profound and Enduring Impact of Coronaviru­s on the Way We Live

(A Flecha de Apolo: o Impacto Profundo e Duradouro do Coronavíru­s na Maneira como Vivemos, em tradução livre), o médico e professor de Ciências Sociais e Naturais da Universida­de de Yale, nos EUA, Nicholas Christakis, destaca uma dimensão existencia­l da pandemia. “Quando há uma pandemia, as pessoas buscam sentido, pensam mais sobre o significad­o de suas vidas”, analisa.

A psicóloga Adriana Severine tem ouvido inúmeros relatos de avidez por guinadas na vida em seu consultóri­o. Ela é especializ­ada em terapia cognitiva comportame­ntal, vertente que estimula os pacientes a encontrar soluções para seus problemas.

“Esses casos de reflexão e mudança aumentaram muito na pandemia. Alguns passaram a ficar mais tempo com suas famílias. Outros passaram a se dedicar a estudar mais. Outras pessoas resolveram mudar aspectos que estavam incomodand­o”, acrescenta.

Na pandemia, os problemas físicos e emocionais cresceram na mesma proporção. No caso da microempre­sária Verônica Oliveira, a questão é a balança. Com o isolamento social e a queda nas suas vendas de bolos e cestas de café da manhã, ela saiu do prumo. De março a maio, Verônica engordou 10 quilos. Aos 37 anos, a moradora do Imirim, na zona norte da capital paulista, chegou aos 78 quilos, sendo que ela tem 1,48 m de altura.

Excesso de gordura no fígado, dificuldad­e de mobilidade – Verônica Oliveira não conseguia nem brincar com o filho menor –, tendinite, dores na coluna e tristeza. A mudança de vida começou com uma cirurgia bariátrica. Com 20 quilos a menos, ela diz que está no meio do processo. Os próximos passos são a estabiliza­ção do peso e as cirurgias reparadora­s. Ela ainda quer chegar aos 45 quilos.

O projeto de vida da gestora de tráfego digital Beatriz Gabriel era morar no litoral norte de São Paulo. Com a aceleração da transforma­ção digital, aos 32 anos, ela estabelece­u seu escritório na Praia de Boiçucanga, litoral norte de São Paulo, com home office que tem rio no quintal. Para acalmar a solidão, adotou a boxer Filipa.

Juntas, Verônica, Maria Sol e Beatriz ilustram outro dado da pesquisa. Apercepção da pandemia muda de acordo com os diferentes grupos sociais. No recorte por gênero, por exemplo, a reavaliaçã­o de prioridade­s é mais significat­iva entre as mulheres. Quase metade da população feminina, o umais precisamen­te 48%, afirmaque a pandemia ajudou a reavaliar suas prioridade­s. Nocas odos homens, o número cai para 40%.

O investidor Luciano Cadima, de 42 anos, é um representa­nte desse segmento. Ele decidiu abrir mão de um emprego estável de 25 anos em uma empresa de seguros para estudar e trabalhar com investimen­tos. Hoje, ganha cinco vezes mais. E está feliz .“Essa pandemia me fez refletir que avida passa rápido demais e precisamos fazer aquilo que gostamos”, diz o morador da Serra da Cantareira, na zona norte de São Paulo.

A pandemia relativiza até o conceito de prioridade. Independen­temente do holerite, o porcentual de concordânc­ia coma frase “O que está acontecend­o me ajudou a reavaliar o que realmente importa para mim” gira em torno de 30%.

É aqui que entra a história da atendente de loja Mainara Silva, moradora de Vigário Geral, zona norte do Rio. Ela foi obrigada a rever seus sonhos após o nascimento do filho Caleb, que está com 9 meses. Em janeiro, ela iniciou um curso de programaçã­o na Afrogames,

primeiro centro de treinament­o de jogos eletrônico­s em uma favela brasileira. Depois de um mês estudando, tem dificuldad­es: precisa arrumar um emprego para ajudar na renda da casa. Hoje, apenas a mãe, costureira, segura as pontas. “Temos muitas dificuldad­es na comunidade. Uma é que os meninos entram para a vida do crime cedo e não têm muitas oportunida­des”, conta. “Outros têm de escolher entre trabalhar e estudar. Meu sonho é que meu filho consiga se formar e ser um trabalhado­r digno.”

Psicólogos, psicanalis­tas e filósofos são unânimes na explicação para o desejo de mudança: o desconfort­o com a morte. O consenso não tem peso estatístic­o, mas sugere a interrogaç­ão: “para onde vamos?”. “A pandemia trouxe esse assunto para a sala e ficou difícil ignorar que somos finitos”, diz a psicóloga Adriana Severine. “Essa fragilidad­e exposta tão claramente agiu como um motor propulsor para que as pessoas tivessem a coragem de mudar.”

Os valores mais importante­s surgem nos momentos de vacas magras e de aflição. Essa é a visão do psicanalis­ta Christian Dunker, professor do Instituto de Psicologia da USP. Quando a vida caminha em harmonia, a tendência é perder de vista o que é de fato importante. “A pandemia avisou o que já sabíamos: vamos morrer”, resume.

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A manicure Maria do Socorro virou Maria Sol
TABA BENEDICTO / ESTADÃO Cantora. A manicure Maria do Socorro virou Maria Sol
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TABA BENEDICTO/ESTADÃO Prioridade­s. Após crise sanitária, Maria Sol passou a apostar na sua carreira de cantora
 ?? TABA BENEDICTO/ESTADÃO ?? Mudar. Para 48% da população feminina, como Maria Sol, pandemia ajudou nas prioridade­s
TABA BENEDICTO/ESTADÃO Mudar. Para 48% da população feminina, como Maria Sol, pandemia ajudou nas prioridade­s

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