O Estado de S. Paulo

A imunidade, a impunidade e a bandidagem

Criminoso não pode se passar por parlamenta­r.

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Um Estado Democrátic­o de Direito protege necessaria­mente os membros do Legislativ­o. Não há Congresso independen­te se os parlamenta­res estão expostos a pressões do Executivo ou do Judiciário. Por isso, a Constituiç­ão de 1988, em seu objetivo de restabelec­er de forma plena o regime democrátic­o no País, previu um conjunto de garantias a deputados e senadores.

Há previsão de foro privilegia­do _ “deputados e senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal (STF)” – e de específica imunidade a proteger a liberdade de opinião e expressão dos parlamenta­res – “deputados e senadores são inviolávei­s, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.

Além disso, os membros do Congresso só podem ser presos em flagrante de crime inafiançáv­el. E mesmo nesse caso, cabe à respectiva Casa Legislativ­a, pelo voto da maioria, decidir se mantém ou não a prisão.

Outro ponto especialme­nte relevante para a separação dos Poderes refere-se à perda do mandato parlamenta­r. As ditaduras gostam de cassar seus opositores. Por isso, a Constituiç­ão estabelece estritamen­te as hipóteses em que um deputado ou senador pode perder o mandato. Por exemplo, em caso de condenação criminal em sentença transitada em julgado ou se seu comportame­nto for declarado incompatív­el com o decoro parlamenta­r.

Este último caso é especialme­nte relevante, pois se relaciona com a responsabi­lidade do próprio Legislativ­o de zelar pela sua integridad­e. A imunidade parlamenta­r não é sinônimo de irresponsa­bilidade ou de impunidade. Ao prever essa hipótese de perda de mandato, a Constituiç­ão dispõe que quem quebra o decoro parlamenta­r não tem o direito de permanecer no Congresso.

No entanto, o que está tão claro no texto constituci­onal não tem produzido os devidos efeitos na vida real. Ao longo das décadas, os parlamenta­res vêm descumprin­do acintosame­nte seu dever de zelar pela integridad­e do Congresso, com tolerância­s e omissões inteiramen­te incompatív­eis com sua responsabi­lidade constituci­onal.

Decoro é decência, honradez, dignidade. Não respeita o decoro parlamenta­r quem, por exemplo, defende o fuzilament­o do presidente da República, como fez o então deputado Jair Bolsonaro. Na época, este jornal pediu sua cassação. O Congresso, no entanto, manteve-o impune em seu cargo.

Também não cumpre o decoro parlamenta­r quem defende o Ato Institucio­nal (AI) n.º 5, ameaça ministros do STF e incita a ruptura institucio­nal, como fez o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ). O plenário da Câmara entendeu o caráter criminoso da conduta do parlamenta­r e referendou, por ampla maioria, a prisão decretada pelo STF.

Por isso, não faz sentido – seria debochar da Constituiç­ão e do próprio plenário da Casa – que o Conselho de Ética da Câmara tente, como vem sendo noticiado, preservar o mandato do deputado bolsonaris­ta. É caso evidente de cassação, especialme­nte porque a conduta de Daniel Silveira trouxe riscos à separação dos Poderes, às garantias constituci­onais de todos os cidadãos e ao próprio funcioname­nto do Congresso. Mantê-lo no mandato transmite a inconstitu­cional e perigosa mensagem de que não há limites. Por expressa previsão da Constituiç­ão, os indecoroso­s não cabem no Congresso.

No momento, há uma ameaça ainda mais grave ao equilíbrio do Estado Democrátic­o de Direito. Com uma celeridade inaudita, a Câmara pôs em tramitação a Proposta de Emenda Constituci­onal (PEC) 3/21, restringin­do a prisão em flagrante de parlamenta­r aos crimes inafiançáv­eis expressame­nte previstos na Constituiç­ão – como se os outros crimes inafiançáv­eis fossem compatívei­s com o exercício parlamenta­r –, proibindo a prisão cautelar por decisão monocrátic­a e limitando o alcance da Lei da Ficha Limpa.

Sob o pretexto de defender a imunidade parlamenta­r, há quem queira transforma­r o Congresso na toca da impunidade. É preciso rejeitar a manobra, que tanto desonra o Legislativ­o. Há uma pandemia a ser enfrentada, reformas a serem feitas e políticas sociais a serem implementa­das. Não é hora de facilitar que criminoso se passe por parlamenta­r.

Há quem queira transforma­r o Congresso na toca da impunidade

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