O Estado de S. Paulo

RAP INCOMODA O REGIME EM CUBA

Governo pede reação de artistas aliados e diz que música é de ‘grosseira ingerência política’

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Música Patria y Vida é um contrapont­o ao lema “Patria o Muerte” e está sendo vista como provocação pelo regime socialista.

Uma incisiva canção de protesto de rappers cubanos que viralizou nas redes sociais desencadeo­u uma enfurecida resposta oficial em Havana e polarizou a luta cultural sobre a situação em Cuba. A música Patria y Vida, que chegou a quase 2 milhões de visualizaç­ões no Youtube em uma semana, é considerad­a uma provocação pelo governo.

Composta por famosos artistas cubanos como Yotuel Romero, Descemer Bueno, a dupla Gente de Zona e os rappers Maykel Osorbo e El Funky, a canção se espalhou muito rápido pelas redes sociais. Em menos de 72 horas, já tinha sido visualizad­a mais de 1 milhão de vezes na plataforma de vídeos.

Segundo a história oficial cubana, em plena revolução dos anos 50, “Patria o Muerte” foi um dos lemas de Fidel Castro e de outros guerrilhei­ros. O mote, que tem sido repetido milhões de vezes em discursos, estátuas e na propaganda oficial, é tão famoso quanto a frase “Até a vitória sempre”. No entanto, quase seis décadas depois, um grupo de músicos ousou fazer uma provocação e o governo de Cuba, que não conseguiu impedir a disseminaç­ão da canção, respondeu com irritação.

O Granma, principal jornal do país e meio de comunicaçã­o oficial do regime, disse em reportagem que se trata de uma “grosseira ingerência política” sobre a soberania nacional. A canção desencadeo­u ainda uma resposta do presidente, Miguel Díaz-canel, e reações de quase toda a classe política, imprensa e noticiário­s oficiais.

O videoclipe foi gravado em Havana e Miami. Da Flórida, vieram os trechos da dupla Gente de Zona e os compositor­es Descemer Bueno e Yotuel Romero – do grupo Orixas. De Cuba, os rappers Maykel Osorbo e El Funky. Com refrãos de crítica ao governo, a música diz que “o povo se cansou” e espera “novo amanhecer”. O vídeo também faz alusão a ícones nacionais como José Martí e o mais recente movimento dissidente de San Isidro, com imagens da manifestaç­ão de cerca de 300 artistas independen­tes, em 27 de novembro, em Havana.

Díaz-canel foi quatro vezes ao Twitter para apelar a outros artistas cubanos que promovesse­m uma resposta. E foi atendido: “A tua canção provocador­a não me assusta, nem me ameaça. Sei que, enquanto irradia o forte sol da dignidade, aqui ninguém se rende. Socialismo, pátria ou morte”, diz uma estrofe de um repente de Tomasa Quiala, popular poeta elogiada pelo presidente.

A relação entre artistas e o regime já passou por vários momentos difíceis e, nos últimos meses, parece ter entrado em outra zona de turbulênci­a. Segundo María Isabel Alfonso, especialis­ta em cultura cubana do St. Joseph’s College, de Nova York, a dura reação do Estado “é uma ratificaçã­o de que, até agora, o governo cubano não conseguiu adotar uma posição de tolerância em relação às manifestaç­ões artísticas que criticam as falhas do modelo atual”.

Na ilha, muitos criticam a mensagem do rap que tem um vídeo com uma caprichosa edição e produção visual. Para o historiado­r da música cubana Emir García Meralla, a canção é um “panfleto político de baixa categoria”. Segundo ele, “o orgulho nacional foi ferido” e “nenhum país admite que se ataque seu orgulho”. “Isso nos coloca como Fuenteovej­una (peça teatral de Félix Lope de Vega), todos unidos.”

“Nenhuma música vai produzir uma situação de instabilid­ade neste país”, disse o cientista político Rafael Hernández, segundo o qual a música é produto de “uma direita obstinada” de Miami, onde o vídeo foi recebido com aprovação e entusiasmo.

Na ilha, porém, os artistas são criticados por uma posição ambígua com relação ao regime, pois muitos fizeram sucesso em Cuba antes de deixar o país e começaram a criticá-lo depois. Os detratores da música lembram de um show do Gente de Zona, realizado em Cuba, em 2018, quando os músicos saudaram a presença de Díaz-canel.

O grupo acabou se estabelece­ndo na Flórida depois de ser atacado após uma visita a Miami e de ter shows cancelados em Cuba. “Em suma, a polêmica sobre o vídeo Patria y Vida revela que as feridas entre os cubanos que vivem na ilha e no exterior ainda estão abertas”, disse Jorge Duany, diretor do Instituto de Pesquisas de Cuba, da Universida­de Internacio­nal da Flórida. Ele afirmou que, embora alguns dos músicos envolvidos tenham se mudado para os EUA, as “fronteiras ideológica­s entre Miami e Havana ainda estão estabeleci­das”. / AFP

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YANDER ZAMORA/EFE Legado. Líder cubano Fidel Castro em imagem com adaptação do mote ‘Patria o Muerte’

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