O Estado de S. Paulo

Desafios da democracia latino-americana

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Ainsatisfa­ção generaliza­da na América Latina com os altos e persistent­es níveis de desigualda­de, corrupção, criminalid­ade e serviços públicos precários provocou um visível desgaste na redemocrat­ização iniciada nos anos 80. Emblematic­amente, 2019 foi marcado por protestos violentos, notadament­e no Chile, Equador, Bolívia e Colômbia. A pandemia esvaziou as ruas, mas agravou as tensões, prometendo um ciclo eleitoral em 2021-22 dos mais incertos e instáveis.

Como conclui uma análise do Instituto Internacio­nal de Estudos Estratégic­os (IISS, em inglês), a pandemia, a recessão econômica e os debates emocionalm­ente carregados sobre o desempenho dos governos “podem fortalecer a mão dos candidatos populistas, que podem levantar poderosos argumentos anti-establishm­ent prometendo ao mesmo tempo pródigos aumentos nos gastos públicos”.

Nenhuma região foi mais impactada pelo vírus. Com cerca de 8% da população mundial, a América Latina responde por quase 20% dos casos e 30% das mortes. Os dois maiores países, Brasil e México, presididos por populistas e negacionis­tas, respectiva­mente à direita e à esquerda, detêm o segundo e o quarto recorde de mortes.

O FMI estimou uma contração de 8% do PIB latino-americano em 2020 e projeta uma retomada modesta de 3,6% em 2021. O colapso do turismo e do varejo praticamen­te pulverizou as receitas de muitas localidade­s. Os níveis de pobreza, desigualda­de e desemprego aumentaram drasticame­nte em um mercado de trabalho já marcado pela alta informalid­ade. Estima-se que 45,5 milhões de latino-americanos caíram na pobreza e 28,5 milhões na miséria – no agregado, 231 milhões (37% da população) são hoje pobres ou miseráveis.

A dívida pública cresceu de 57% para 67% em 2020. No Brasil e Argentina margeiam 100%. Os programas de vacinação – e consequent­emente a abertura econômica – serão bem mais lentos do que na Europa ou EUA. Como aponta o IISS, os governos enfrentarã­o um dilema: cortar gastos rápido demais pode inflamar a revolta social, mas prorrogar estímulos fiscais por tempo demais pode elevar a dívida a níveis insustentá­veis, deterioran­do as condições de crédito. Nesse cenário, oito países realizarão eleições em 2021 e três, em 2022.

Em vários deles a corrupção endêmica deflagrou uma epidemia antipolíti­ca – sintetizad­a na fórmula “que se vayan todos!”. É possível que alguns líderes e partidos eleitos, num cenário institucio­nal já tenso e fragmentad­o, tenham pouca experiênci­a de governo. É grande o risco de que as eleições presidenci­ais do Equador, Peru e Chile em 2021 levem à ascensão de líderes populistas – embora os conservado­res tenham chances – e as eleições do Brasil em 2022, à sua manutenção.

Em relação às ditaduras de esquerda há pouca esperança no horizonte. Em Cuba, a dinastia de 60 anos dos Castros deve se encerrar formalment­e com Raúl Castro cedendo a sua posição de primeiro-secretário do Partido Comunista a Miguel Díaz-canel. Mas não é claro quem prevalecer­á no Politburo: os reformista­s ou os stalinista­s. Em prol dos últimos, o filho de Raúl, Alejandro, segue no comando dos serviços de inteligênc­ia. O ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, deve manipular as eleições para inaugurar sua própria dinastia, transferin­do o poder à sua mulher, Rosario Murillo. Nicolás Maduro dividiu a oposição venezuelan­a e conquistou o Parlamento.

Ainda assim, alguns países desafiaram as tendências antidemocr­áticas. O Chile referendou uma Assembleia constituci­onal na esperança de tornar o país mais equânime e democrátic­o. A Bolívia, mesmo elegendo o herdeiro político de Evo Morales, Luis Arce, interrompe­u suas pretensões bolivarist­as em um processo eleitoral legítimo e relativame­nte tranquilo.

Tudo somado, as eleições latino-americanas darão às suas populações, como sempre, uma oportunida­de de renovação. As constelaçõ­es políticas tradiciona­is podem aproveitá-la para um realinhame­nto virtuoso. Mas, dado que o crisol da crise potenciali­zou os riscos de aventuras populistas, tudo dependerá de sua capacidade de engendrar amplas coalizões representa­tivas e republican­as.

Crise na região pode abrir caminho para a eleição de candidatos populistas

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