O Estado de S. Paulo

Insper aponta as lições deixadas pela crise da covid

Na economia, o principal legado é o alerta para o risco de as finanças brasileira­s sucumbirem à pressão crescente por aumento de gastos

- Idiana Tomazelli /

Um ano após o primeiro caso de covid-19 no Brasil, o Insper lança um livro com análises sobre o legado deixado ao País pela crise ainda em curso e que chega agora a seu pior momento, com explosão de casos e colapso em hospitais de diferentes regiões. Na temática econômica, a principal lição é na verdade um alerta para o risco de as finanças brasileira­s sucumbirem à pressão crescente por aumentos temporário­s e permanente­s de gastos sem que haja contrapart­idas de ajuste fiscal.

A principal materializ­ação desse risco hoje é a Proposta de Emenda à Constituiç­ão (PEC) emergencia­l, que reunia gatilhos de contenção de despesas e agora serve de instrument­o para a recriação do auxílio emergencia­l a vulnerávei­s. Com seus dispositiv­os de ajuste já bastante desidratad­os, a PEC corre o risco de ficar sem nenhuma medida de redução de gastos, com aprovação apenas do auxílio emergencia­l.

No capítulo sobre a intensific­ação da crise fiscal, o presidente do Insper, Marcos Lisboa, e o economista Marcos Mendes, pesquisado­r associado da instituiçã­o e exchefe da Assessoria Especial do Ministério da Fazenda, advertem sobre os problemas de usar a pandemia para justificar aumentos permanente­s de gasto público e criticam a inércia do governo e do Congresso. “Querer reerguer a economia ou resolver os problemas sociais à base de expansão dos gastos do governo nos fará reincidir no erro cometido no passado recente”, diz o texto.

O presidente do Insper afirma que o debate fiscal no Brasil é muito diferente do observado no resto do mundo, em que países com melhor situação financeira podem decidir gastar mais e ampliar investimen­tos para ajudar na recuperaçã­o. Por aqui, segundo Lisboa, há um conjunto de regras que levam ao cresciment­o sem freio dos gastos obrigatóri­os e um volume superior a R$ 300 bilhões em benefícios tributário­s distribuíd­os pelo País, e mexer nisso é difícil graças à atuação dos grupos de interesse. “Temos essa dificuldad­e de enfrentar os problemas. A consequênc­ia é o baixo cresciment­o de muito tempo”, afirma.

Segundo Lisboa, o governo deixou de aproveitar boas oportunida­des para negociar medidas de ajuste, como o próprio socorro financeiro a Estados e municípios, que poderia ter incluído um freio mais duro nas despesas administra­tivas dos governos regionais. A proposta foi aprovada mediante a previsão de congelamen­to de salários até o fim de 2021, mas muitos Estados e municípios já burlam essa proibição. Ele também questiona o fato de o Congresso até hoje não ter aprovado a lei que vai cobrar aplicação mais rígida do teto remunerató­rio dos servidores, limitando os “pendurical­hos” que turbinam salários e pressionam as despesas.

Mendes, por sua vez, afirma que o debate sobre como lidar com a crise da covid-19 não se resume a uma polarizaçã­o entre austeridad­e fiscal e estimular a economia. “É tentar parar a trajetória insustentá­vel que já no presente nos traz muito prejuízo. Não é que vai ter um problema lá na frente que a gente não vai conseguir pagar a dívida, não. O problema já é hoje. Já tem uma carga fiscal muito grande, um sistema tributário ruim que trava o cresciment­o e a produtivid­ade da economia, e uma incerteza muito grande em relação à trajetória da dívida pública. Esse modelo já é prejudicia­l à economia há muitos anos, e a situação pode se agravar”, diz.

“Fica como lição a sensação de que a gente não aproveitou a oportunida­de de usar o choque da pandemia para fazer reformas estruturas. Talvez fosse mais fácil obter consenso para fazer essas reformas num momento de crise. Desperdiça­mos a crise”, afirma Mendes.

Proteção social. Uma dessas oportunida­des é a reforma do sistema de proteção social, para ampliar e ao mesmo tempo focalizar as políticas. Recentemen­te, Mendes participou da elaboração de uma proposta Centro de Debates de Políticas Públicas (CDPP) para fundir os orçamentos do Bolsa Família, seguro defeso, abono salarial e salário-família e criar um novo desenho, que inclua uma renda mínima para os mais vulnerávei­s e uma poupança (similar a um FGTS) para informais que estão sujeitos a oscilações na renda. O próprio presidente Jair Bolsonaro, porém, interditou discussões que tratavam da fusão de programas sociais dizendo que não “tiraria de pobre para dar a paupérrimo”.

No capítulo sobre “o uso do aparato estatal em crises: oportunida­des e cuidados”, os pesquisado­res Sérgio Lazzarini e Aldo Musacchio analisam os acertos e as falhas do governo na garantia de oferta de equipament­os de proteção, vacinas, seringas, espaços em UTIS e suporte financeiro a pesquisas ou a empresas que tiveram atividade comprometi­da.

No início do ano passado, o governo zerou imposto de importação para diversos itens como máscaras, respirador­es, cilindros de oxigênio, seringas, entre outros. Mas, para Lazzarini, a intervençã­o estatal foi pequena perto do que poderia ter sido feito. Ele lembra da “caravana” de empresário­s que acompanhar­am o presidente Jair Bolsonaro ao Supremo Tribunal Federal (STF) para pedir a continuida­de de suas atividades.

Segundo Lazzarini, uma estratégia inteligent­e teria sido colocar essas empresas, sobretudo indústrias, para produzir os insumos tão necessário­s à crise e, de quebra, garantir a atividade econômica. “Era pra ter mapeado a estrutura produtiva e elevado a produção de determinad­os itens”, afirma. Para ele, numa situação como essa é necessário ter mais Estado (de forma pontual e temporária) e menos Estado (no sentido de flexibiliz­ar algumas regulações).

“Uma estratégia inteligent­e seria fazer a intervençã­o mais rápida. A ação do Estado pouco efetiva alarga a necessidad­e e não resolve”, critica, ressaltand­o que o Brasil voltou à estaca-zero ao vivenciar restrição de respirador­es e esgotament­o no número de leitos de UTI disponívei­s. “É um caso patente de descoorden­ação. Há relutância do governo em assumir uma agenda.”

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FELIPE RAU/ESTADÃO-25/4/2018 Parâmetro. Para Lisboa, debate fiscal no Brasil é diferente do observado no resto do mundo
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Laura Muller Machado Editora: Autografia Preço: R$ 50,90
LEGADO DE UMA PANDEMIA Organizaçã­o: Laura Muller Machado Editora: Autografia Preço: R$ 50,90

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