HÁBITOS QUE MUDARAM
Menor tempo nos shoppings, queda no entretenimento presencial, mais vendas online e gastronomia são os novos comportamentos
A atriz Khamillah Jelezoglo, de 38 anos, ficou preocupada com o fechamento dos teatros, em março do ano passado, por causa da pandemia. Para ajudar nas despesas, ela adaptou a sua produtora de peças infantis para transmitir pequenos musicais por videochamadas. Financeiramente, o negócio familiar ainda está longe das apresentações para mais de 500 pessoas que costumava fazer, mas está indo bem. São de seis a oito chamadas por dia. Cada uma custa entre R$ 20 e R$ 35, de acordo com o número de personagens envolvidos.
As crianças e os adultos adoram. A pedagoga Camila Resende, de 42 anos, contrata frequentemente as chamadas para a filha Pietra Resende, de 4. “Temos de nos adaptar a esse novo mundo. A criança vê o personagem ali pelo celular, tão próximo. Até hoje minha filha conta que a ‘Frozen’ sabe o nome dela”, diz.
Um dos segmentos mais afetados pelas regras de distanciamento social impostas pela pandemia, o setor de entretenimento espelha inúmeras mudanças. Atividades com interação em locais públicos foram as que mais se transformaram. Cerca de 60% dos brasileiros mudaram o comportamento em relação ao entretenimento fora de casa, de acordo com pesquisa da consultoria Oliver Wyman que o Estadão divulga com exclusividade. O que acontece no teatro se esparrama pela sociedade. Basta colocar o pé para fora de casa para descobrir que cada lugar ficou diferente.
Até a maneira de colocar esse pé para fora foi modificada. Cerca de 48% dos entrevistados mudaram de atitude na hora de se locomover. O transporte coletivo, por exemplo, está perdendo espaço. Pesquisa da Confederação Nacional do Transporte (CNT) aponta que mais de 97% das empresas de ônibus regulares e de ônibus urbanos foram afetadas e 78% do segmento de metrô e trens acabou sendo atingido de forma negativa pelo vírus.
O transporte não é só o acesso a bens e serviços, mas as conexões entre as pessoas e a relação com a cidade. Com medo da contaminação, a assistente social Andreia Soares Fonseca, de 37 anos, vai trabalhar de bike. Diariamente, ela pedala mais ou menos 2 quilômetros para registrar o ponto no Ambulatório de Especialidades da Freguesia do Ó, mesmo bairro onde mora, na zona norte de São Paulo. Além disso, vai à quitanda, ao banco e ao mercado em duas rodas.
A pandemia acelerou um fenômeno que já estava rolando. Na cidade de São Paulo, o uso da bicicleta como meio de locomoção cresceu 24% de 2007 para 2017, passando de 304 mil para 377 mil viagens por dia. “Ainda temos pouca estrutura para a mobilidade de bike, poucas ciclovias e ciclofaixas, mas estou evitando o transporte coletivo”, diz a assistente social, que aposta nos veículos por aplicativo para distâncias maiores.
O temor da assistente social com o transporte faz sentido, na opinião dos especialistas. O risco de contaminação é alto. “Dentro do ônibus, é importante não colocar a mão no rosto e usar sempre o álcool em gel”, aconselha a infectologista Sylvia Lemos Hinrichsen, consultora de Biossegurança e Controle de Riscos da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
A saída seria colocar mais ônibus na cidade, defende Carolina Requena, pesquisadora do Centro de Estudos de Metrópole e da Rede de Políticas Públicas & Sociedade, ambos ligados à USP. “A mobilidade urbana tem de ser tratada como uma das principais políticas de segurança sanitária no contexto de pandemia. É preciso ter mais veículos com menos gente. É uma conta simples.”
Em funcionamento pleno como serviço essencial desde o início da pandemia, os supermercados são uma espécie de termômetro das transformações. Cerca de 53% dos entrevistados mudaram de abordagem nas compras no mercado. “A pandemia evidenciou uma clara mudança no perfil de consumo. As pessoas passaram a comprar mais alimentos congelados e utensílios domésticos para cozinhar em casa”, afirma Ronaldo dos Santos, presidente da Associação Paulista de Supermercados (Apas).
Por isso, os serviços de delivery e as vendas online nos supermercados cresceram bastante. Shirlei Castanha, proprietária de supermercado na Vila dos Remédios, zona oeste, afirma que o e-commerce foi multiplicado por cinco em sua loja. “O crescimento que a gente esperava dentro de três ou quatro anos foi acelerado por causa da pandemia”, diz a empresária, que registrou aumento geral de 19% nos negócios, puxado também pelo hábito de cozinhar em casa. De acordo com a Apas, o crescimento real no ano passado foi de 2,32%.
Nessa nova ordem de só sair de casa para o essencial, os passeios aos shopping centers ficaram mais raros. Segundo a Associação Brasileira de Lojistas de Shopping (Alshop), entidade que reúne 105 mil lojas em 577 estabelecimentos, as visitas mensais caíram de 502 milhões em 2019 para 341 milhões no ano passado. O tempo de permanência nos centros de compra também foi reduzido de 1h30 para algo entre 20 e 30 minutos, diz Luís Augusto Ildefonso da Silva, presidente da entidade. “As pessoas estão se sentindo mais seguras e voltando ao shopping, mas a recuperação do setor deve levar um ano e meio”, avalia.
Ainda é cedo para identificar a diferença entre o hábito que é apenas uma nuvem passageira e o legado permanente depois que o coronavírus baixar a bola. As vendas online dos supermercados, que chegaram a aumentar 107% no fim de março, recuaram para 59% três meses depois, por exemplo. Isso significa que alguns cenários que estão surgindo devem se impor no mundo pós-pandemia; outros, não.
CAIU O USO DO TRANSPORTE PÚBLICO, DANDO LUGAR AO DA BICICLETA