O Estado de S. Paulo

Vacinas, valores e velórios

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’

- •✽ ESCREVE AOS SÁBADOS ✽

Já estava me preparando para ser vacinado quando as vacinas acabaram. Foi aí que descobrimo­s que, na estupefaci­ente gestão do general Placebo no Ministério da Saúde, a vacinação é regida por dois calendário­s, como o tempo já foi em priscas eras. Pelo calendário juliano, quando há vacinas disponívei­s, e pelo calendário gregoriano, quando elas acabam e ainda não têm data para chegar. Daí a máxima romana “sine vaccinus, sine die”, cunhada antes da invenção da primeira vacina.

E assim as vacinações no Rio foram jogadas para as calendas. Ainda bem que para as calendas romanas, não para as gregas. Será que nas calendas de março saberemos quando, pelo calendário gregoriano, levaremos nossa redentora picada?

Pior do que essa espera, possivelme­nte passageira, e as justificad­as incertezas relativas à segunda dose foi tomar conhecimen­to das descaradas mentiras sobre a performanc­e de Bolsonaro durante a pandemia que a ministra Damares e o chanceler Ernesto Araújo tentaram vender na ONU. Ficaram só na tentativa porque ninguém lá fora acredita mais em nada que diga, faça ou prometa fazer de bom o ogro que nos governa, exaspera, envergonha, e concentrou no extermínio seu mais eficaz programa de corte de gastos na Previdênci­a.

Não menos desalentad­ora foi a constataçã­o de que a Bolsa de Valores se sensibiliz­a muito mais com uma troca no comando da Petrobrás pelo presidente da República que seus investidor­es ajudaram a eleger do que com as ininterrup­tas e recordista­s altas na contagem de mortos e infectados pela covid, no País. Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, bazofiou o capitão negacionis­ta em abril do ano passado. Atingimos a marca de 250 mil mortos esta semana; 50 mil só nos últimos 48 dias – e vacinamos apenas 3% da população.

Se alguma coisa o presidente sabe fazer, e bem, é mentir e tirar o dele da reta. “Não sou coveiro”; “Não sou profeta”; “Não compro seringas”. Pilatos ao menos lavava as mãos. O capitão nem sequer usa máscara.

A fulminante queima de ações da BR também veio corroborar a teoria de que a matança em curso, se não faz parte de um maquiavéli­co projeto político e econômico do bolsonaris­mo, como a aniquilaçã­o da cultura e da educação, desmoraliz­ou em definitivo o chavão de que “as nossas instituiçõ­es estão funcionand­o”. Se estivessem, ou pelo menos o STF estivesse, a pleno vapor, o nosso Napoleão de hospício já estaria na ilha de Elba da nossa imaginação.

Verdade que o ministro Alexandre de Moraes se tem comportado com o destemor que seu cargo exige, mas Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes,

conforme salientou na terça-feira o comentaris­ta político Bernardo de Mello e Franco, facilitara­m o serviço para a chicana que culminou com a anulação das quebras de sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro, no inquérito das rachadinha­s. Toffoli e Fux travaram a investigaç­ão por cinco meses, e Mendes abriu a gaiola para Fabrício Queiroz, o factótum da familícia.

Comprado o Legislativ­o, cooptadas e neutraliza­das as Forças Armadas mediante cargos, subsídios, promessas, leite condensado e claque em formaturas de cadetes, pergunto: quais instituiçõ­es ainda funcionam normalment­e nestas bandas?

Por encarnar e afiançar a “ultima ratio” de qualquer país que as possua, as Forças Armadas (sim, mais de dez nações sobrevivem sem o seu concurso) deveriam preservar-se de aventuras como foram os golpes de que participar­am desde a Proclamaçã­o da República. O que pretendia impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, foi só uma (ou a) exceção à regra justamente porque um oficial do Exército, o marechal Henrique Teixeira Lott, e sua excalibur da legalidade melaram a tempo a conjura udenista.

Quando vejo, leio ou ouço alguém lamentar a escassez ou mesmo ausência, hoje, de políticos e outros figurões civis de alto nível, sempre me vem à lembrança a figura do marechal. Com ele, nenhum golpista tirava farofa. Que reação lhe provocaria um confesso autogolpis­ta como Bolsonaro? Que atitude teria face à fascistoid­e ameaça do general Villasboas ao STF, em abril de 2018?

O ator, humorista e cronista Gregório Duvivier desenvolve­u uma tese que, em outras cabeças, inclusive na minha, já andou caraminhol­ando. Ao contrário do que se pensa, o presidente não protege e prestigia além da conta os seus ex-colegas de farda, notadament­e os da arma em que fez carreira, o Exército, mas, na verdade, os rebaixa e desmoraliz­a. Ao lhes dar emprego e funções que exigem especial capacitaçã­o, expõe-lhes a incompetên­cia e engorda as desconfian­ças de que suas nomeações são menos frutos de uma ineludível promiscuid­ade corporativ­ista do que das limitações sociais impostas pela vida em caserna. Azar nosso se o capitão só se dá com milicos.

Para Duvivier, Bolsonaro está se vingando do coronel que o humilhou, reprovando-o por sua “falta de lógica, racionalid­ade e equilíbrio”, de outro oficial que condenou sua “excessiva ambição em realizar-se financeira­mente” e, acrescento eu, do general Ernesto Geisel, que o considerav­a “um mau militar”.

Não sei se concordo com a hipótese de que nem décadas de propaganda antimilita­r da esquerda causaram mais estrago na imagem do Exército do que a sanha empregatíc­ia do presidente, mas é possível que sim. Já a suspeita de que só agora, com meio século de atraso, o capitão cumpre uma missão que lhe teria sido delegada pelo capitão Carlos Lamarca, não é, como toda blague, para ser levada a sério. É para rir.

Ria, enquanto o golpe não vem.

Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, mas atingimos a marca de 250 mil

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