Ala liberal perde terreno e aponta falhas no governo
Um dos pilares da frente que elegeu o presidente em 2018, o grupo sofreu perdas relevantes no governo e ampliou críticas ao presidente
Com a queda de Roberto Castello Branco da Petrobrás, já são pelo menos cinco os representantes do “núcleo duro” liberal a deixar o governo – número que pode aumentar com a saída de André Brandão do Banco do Brasil. O grupo ligado ao ministro da Economia, Paulo Guedes, foi um dos pilares da eleição de Bolsonaro e agora sobe o tom contra o governo.
Na semana passada, em linha com o seu estilo “morde e assopra”, o presidente Jair Bolsonaro resolveu fazer um afago no ministro da Economia, Paulo Guedes, depois de criticar a política de preços da Petrobrás e anunciar a demissão do comandante da empresa, Roberto Castello Branco.
Diante dos rumores de que Guedes poderia deixar o cargo após a dispensa de Castello Branco, um dos expoentes do grupo de liberais que ele levou para o governo, Bolsonaro resolveu tirar da gaveta as privatizações da Eletrobrás, a estatal de geração e transmissão de energia, e dos Correios, defendidas desde sempre pelo ministro.
Bolsonaro também procurou mostrar que a percepção de que não está comprometido com a agenda liberal de Guedes – cada vez mais acentuada até entre seus apoiadores – é infundada. “Nossa agenda continua a todo o vapor”, afirmou, ao entregar o projeto de privatização da Eletrobrás ao Congresso, na terça-feira, 23. “Nós queremos, sim, enxugar o Estado, para que a economia possa dar a resposta que a sociedade precisa.”
Guedes, aparentemente, “agasalhou” mais este revés e tudo indica que deverá continuar a conferir ao presidente o verniz liberal que foi essencial para a sua eleição, em 2018, com a esperança de que ainda receberá o aval do chefe para dar tração às suas propostas. Guedes costuma dizer a seus auxiliares que é “duro na queda” – e, considerando que permaneceu no cargo até agora, apesar das inúmeras “bolas nas costas” que levou de Bolsonaro nos 26 meses de governo (leia o texto abaixo) – é difícil discordar dele neste aspecto. Em sua posição, outros, provavelmente, já teriam abandonado o barco por muito menos.
Legado. Com a aproximação das eleições de 2022 e a provável candidatura de Bolsonaro à reeleição, a implementação de medidas que são fundamentais para o País, mas mexem com interesses de todos os tipos, como as privatizações, as reformas, a austeridade fiscal, a abertura econômica e o fim de privilégios setoriais e de categorias profissionais, deverá se tornar cada vez mais difícil. Guedes, porém, parece encarar a sua passagem pelo governo como uma missão e se mostra disposto por ora a enfrentar as adversidades para tentar deixar um legado na economia do qual possa se orgulhar.
“O ministro Paulo Guedes é resiliente, obstinado e determinado, mas não percebeu que foi vencido”, disse recentemente o empresário Salim Mattar, ex-secretário especial de Desestatização, à repórter Cleide Silva, do Estadão. “O presidente está de olho na reeleição e não quer fazer nada que prejudique a sua imagem.”
Batizado de Posto Ipiranga pelo presidente durante a campanha eleitoral, o superministro que reuniu quatro pastas sob seu comando – Fazenda, Planejamento, Desenvolvimento e Trabalho, além da Previdência – está se tornando uma voz cada vez mais solitária no governo.
Aos poucos, mas de forma consistente, a ala liberal que ele representa está vendo seu espaço minguar a olho nu. Da equipe de liberais puros-sangues levados por Guedes para Brasília, restam apenas Carlos da Costa, secretário especial de Produtividade, Emprego e Competitividade do Ministério da Economia, e Roberto Campos Neto, presidente do Banco Central.
Retirada. Com a queda de Castello Branco, que faz parte da velha guarda da Universidade de Chicago, o templo do liberalismo global no qual Guedes também se formou, já são cinco os representantes do “núcleo duro” de liberais do governo que ficaram pelo caminho. Isso sem contar os nomes que bateram em retirada, mas eram profissionais de carreira no setor público, como o ex-secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, ou não faziam parte do círculo mais próximo do ministro.
Além do próprio Castello Branco e de Salim Mattar, que deixou o cargo por não ter conseguido realizar as privatizações em série que pretendia, a lista inclui o ex-secretário especial de Desburocratização, Paulo Uebel, que saiu contrariado com a resistência do presidente em promover uma ampla reforma administrativa, que englobasse os atuais servidores. Inclui ainda o ex-presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, também exaluno da Escola de Chicago, que renunciou ao posto dizendo que “é muito difícil para um grupo de liberais trabalhar no ambiente de Brasília”.
Outro integrante da ala liberal que se desligou do governo foi o ex-secretário especial de Comércio Exterior e Assuntos Internacionais, Marcos Troyjo, cuja missão era tocar a abertura econômica desejada por Guedes. Mas, como a abertura não saiu do papel, em razão da influência exercida por representantes do setor industrial junto a Bolsonaro, Troyjo acabou indicado para ocupar a presidência do Conselho de Governadores do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, em inglês), mais conhecido como Banco dos Brics (a organização formada por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
Rompimento. Se o presidente do Banco do Brasil, André Brandão, deixar mesmo o cargo, como tudo indica, o grupo vai ganhar mais um membro. Brandão colocou o cargo à disposição na sexta-feira, depois de ser ameaçado de demissão por Bolsonaro, por ter anunciado um plano de redução de custos que previa o fechamento de agências e um plano de demissão voluntária para eliminar 5 mil vagas na instituição.
O episódio, aliado à intervenção na Petrobrás, reforça o temor de que a guinada política de Bolsonaro possa levar a um rompimento definitivo com os liberais. “A mudança na Petrobrás aproxima Bolsonaro das práticas do PT”, disse Paulo Uebel em entrevista ao Estadão. “Isso é o oposto do que o eleitor de Bolsonaro gostaria de ver.”
Em vez do discurso adotado na campanha, o presidente está resgatando as velhas posturas corporativistas e nacional-desenvolvimentistas, de viés estatizante, que marcaram a sua trajetória política, sem qualquer identificação com as bandeiras defendidas pelos liberais no País.
Ótica liberal. “O petróleo é nosso ou de um pequeno grupo no Brasil?”, afirmou Bolsonaro, em referência à frase do ex-presidente Getúlio Vargas adotada na campanha nacionalista que levou à criação da Petrobrás, nos anos 1950, ao esbravejar contra os seguidos aumentos nos preços dos combustíveis. “Uma estatal, seja ela qual for, tem que ter sua visão social”, acrescentou, adotando um discurso oposto ao da turma de Guedes.
Pela ótica liberal, a melhor forma de as estatais cumprirem a sua “função social” é por meio do aumento de eficiência e de produtividade, para gerar mais lucro e mais dividendos para o governo poder aplicar o dinheiro em saúde, educação e segurança.
“Os combustíveis são commodities, como o açúcar, o café, o trigo. São commodities cotadas em dólar e seus preços são formados pela oferta e demanda internacional”, afirmou Castello Branco, ao responder às críticas de Bolsonaro, durante a apresentação do balanço da Petrobrás no quarto trimestre de 2020, que apontou lucro recorde de R$ 59,9 bilhões. “Se o Brasil quer ser uma economia de mercado, tem que ter preços de mercado. Não atenderemos aos melhores interesses da sociedade subsidiando os preços dos combustíveis.”
Apesar dessas divergências, boa parte da ala liberal que apoiou Bolsonaro em 2018 vinha relativizando os seus pecados na economia até agora. Mas, diante da sucessão de transgressões às crenças do grupo nos últimos tempos, o divórcio dos liberais com Bolsonaro talvez esteja mais próximo do que se poderia imaginar algum tempo atrás.
“Minha decepção foi gradual. Hoje, não tenho mais confiança na fidelidade de Bolsonaro à agenda liberal”, diz Lucas Berlanza, presidente do Instituto Liberal, uma organização de difusão das ideias liberais no País. “Imaginava que, para mim, o ponto máximo de decepção com Bolsonaro seria se o Paulo Guedes saísse, mas não foi necessário isso acontecer para chegar a esse ponto.”
Como líder dos liberais no governo, Paulo Guedes, provavelmente, vai “apagar a luz”. A questão, agora, pelo que se pode observar, não é tanto saber “se” ele vai deixar o cargo, mas “quando” o fará. Se a guinada nacional-desenvolvimentista e intervencionista de Bolsonaro se confirmar, o risco de Guedes esticar a sua permanência no cargo é ele estar à frente de um exército de um homem só – ele próprio.
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• Termômetro “Imaginava que o ponto máximo de decepção com Bolsonaro seria a saída de Guedes, mas isso não foi preciso para eu chegar lá” Lucas Berlanza PRESIDENTE DO INSTITUTO LIBERAL