O Estado de S. Paulo

Cuidado com o retrocesso

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A Câmara estuda mudanças no sistema eleitoral. Há risco de dar passos para trás.

As manifestaç­ões de 2013 e a ojeriza generaliza­da à “velha política” nas eleições de 2018 evidenciam a necessidad­e de uma ampla reforma política que elimine distorções e anacronism­os que induzem, entre outras coisas, à fragmentaç­ão partidária em legendas nanicas e ideologica­mente invertebra­das, subvertend­o a atividade parlamenta­r num balcão de negócios para seus caciques. Nos últimos anos, passos importante­s foram dados. Agora, a Câmara criou uma comissão para estudar mudanças no sistema eleitoral. Mas, sob o pretexto de dar um passo à frente, há o risco não desprezíve­l de dar vários para trás.

Entre o extenso catálogo de temas apresentad­os pela relatoria, fala-se em adaptações nas regras da propaganda eleitoral, debates, divulgação de pesquisas, condições de elegibilid­ade, recursos judiciais ou sistemas de votação (eletrônico­s e/ou impressos). Há ainda pautas de extrema relevância para a moralizaçã­o do sistema partidário, como o financiame­nto de campanha ou a prestação de contas.

Mas há mudanças que nem deveriam estar sendo discutidas. Não porque não toquem temas relevantes e muito menos por não serem de competênci­a do Parlamento, mas sim, ao contrário, porque já foram deliberada­s em amplos processos participat­ivos de alcance constituci­onal e, agora que estão em processo de implementa­ção, correm o risco de serem abortadas antes que a população possa averiguar seus frutos. As duas mais relevantes são a cláusula de desempenho dos partidos e a extinção do sistema de coligações.

Desde a redemocrat­ização, verificou-se uma escalada da fragmentaç­ão partidária, dificultan­do a governabil­idade na mesma proporção em que facilitava o trabalho dos caciques interessad­os em acessar recursos públicos e alugar as suas cotas de horário eleitoral gratuito. Em 1986, a Câmara dos Deputados tinha 12 partidos; em 2018, eram 30 – 1/3 deles tinha apenas de um a nove deputados. Essa proliferaç­ão de legendas sem representa­tividade foi contida com uma emenda constituci­onal de 2017.

A nova lei impôs uma cláusula de barreira (ou desempenho) impedindo que os partidos que não recebem um cociente mínimo de votos sejam brindados com recursos dos fundos partidário e eleitoral e com horário eleitoral. Já em 2019, os partidos na Câmara precisavam ter ao menos 1,5% dos votos para deputados distribuíd­os em ao menos nove Estados, além de um mínimo de 1% em cada Estado. Dos 30 partidos que elegeram representa­ntes na Câmara, 14 não atingiram esses patamares. Alguns optaram por se incorporar a outras legendas ou ceder seus deputados, de modo que hoje há 24 partidos na Casa. A lei prevê que a eficácia desse filtro salutar seja gradativam­ente ampliada com a elevação do piso de votos para 3% até 2030. Mas nos bastidores da nova comissão já se fala em congelamen­to da cláusula.

Talvez mais importante tenha sido a extinção das coligações partidária­s, uma perniciosa distorção dos mecanismos representa­tivos. Pelo sistema proporcion­al vigente, a quantidade de votos de cada partido determina a sua quantidade de vagas, que então são distribuíd­as aos candidatos mais votados. Ocorre que, antes da nova lei, os partidos podiam se coligar para somar seus votos. Com isso, legendas minúsculas podiam eleger candidatos inexpressi­vos herdando votos de fenômenos populares – o chamado “efeito Tiririca”. De resto, o eleitor que votava em um candidato acabava muitas vezes contribuin­do à revelia para eleger um “caroneiro” de orientação ideológica distinta da sua. No pleito municipal de 2020, o primeiro sem essa possibilid­ade, os partidos nanicos elegeram apenas 1,1% dos vereadores, enquanto na anterior foram 2,4%.

Agora, alguns deputados flertam com o retorno ao antigo sistema. Mas que sentido pode haver em sustar as novas regras antes mesmo de serem testadas nas eleições estaduais e federais de 2022? A menos que a reversão do novo sistema seja muito bem justificad­a – o que é difícil, dado que ele está cumprindo sua finalidade – não é possível classificá-la senão com um nome: retrocesso.

Mudanças são necessária­s, mas é preciso garantir conquistas recentes

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