O Estado de S. Paulo

Um ano de pandemia, mais de dois de desgoverno

- Rolf Kuntz

OBrasil completa um ano de pandemia e dois anos e dois meses de desgoverno, com a economia emperrada, o maior desemprego em oito anos, mais de 250 mil mortos pela covid19 e um processo de vacinação confuso. Mas confusão é a regra. O ministro da Saúde acaba de mandar para o Amapá vacinas destinadas ao Amazonas e vice-versa. O presidente da República anunciou a demissão do presidente da Petrobrás, depois de ameaçá-lo por haver ignorado seus aliados caminhonei­ros. Fevereiro termina com hospitais lotados na maior parte das capitais e recordes de mortes pelo coronavíru­s. Nos últimos dias houve de novo aglomeraçã­o no Palácio do Planalto. O setor público está superendiv­idado e seus financiado­res mostramse nervosos. Há alguma perspectiv­a de melhora a partir desse balanço?

Apesar de lenta e mal planejada, a vacinação é o fato mais promissor, neste momento. Favorecida pela negligênci­a federal e pela inconsequê­ncia de irresponsá­veis, a pandemia continuará matando quase sem freio por muito tempo. Mas o avanço da imunização poderá trazer alguma segurança para os negócios. A normalizaç­ão, no entanto, será o retorno à submediocr­idade anterior à pandemia. A economia poderá crescer 3% ou pouco mais em 2021, segundo as projeções do mercado. Depois, se nada atrapalhar, ficará limitada a um potencial de cresciment­o em torno de 2,5% ao ano. Mas nada disso está assegurado.

Março vai começar com o governo central ainda sem Orçamento aprovado. O projeto continua no Congresso, à espera de votação, mas esse nem é o maior problema. A meta fiscal deste ano é um déficit primário limitado a R$ 247,1 bilhões. Nos 12 meses terminados em janeiro o resultado foi um buraco de R$ 776,44 bilhões. As condições econômicas e sanitárias deste ano devem permitir, esperase, um saldo muito melhor, mas a evolução da epidemia continua incerta, assim como o ritmo da atividade.

O ministro da Saúde virou tema de piadas, há muito tempo, e a sustentaçã­o da retomada vai depender, em primeiro lugar, de um consumo mais vigoroso. Para isso – e para evitar uma catástrofe social – será preciso ressuscita­r, embora em escala menor, a ajuda emergencia­l encerrada em dezembro. Isso custará uns R$ 30 bilhões, talvez mais, e o governo terá de pensar numa contrapart­ida, de preferênci­a algum corte de gasto.

Na sexta-feira essa contrapart­ida era ainda incerta. Um dia antes o secretário do Tesouro, Bruno Funchal, havia advertido: sem a compensaçã­o, poderá diminuir a confiança no compromiss­o de recuperaçã­o fiscal, com piora da avaliação de risco, aumento dos juros e novos entraves à recuperaçã­o da economia e do emprego.

Credibilid­ade ganha importânci­a extraordin­ária quando se tem de administra­r um débito enorme. Em janeiro, a dívida bruta do governo geral – da União, dos Estados e dos municípios, somados ao INSS – chegou a R$ 6,67 trilhões, 89,7% do produto interno bruto (PIB) estimado pelo Banco Central (BC). Nos países emergentes e de renda média, a relação dívida/PIB deve andar em torno de 62%, de acordo com o Fundo Monetário Internacio­nal. No Brasil, o governo central é responsáve­l pela maior parte do endividame­nto e isso torna crucialmen­te importante a sua confiabili­dade.

Mas falta saber qual pode ser a contrapart­ida. A PEC emergencia­l em exame no Senado autoriza a retomada do auxílio sem a limitação do teto de gastos. A compensaçã­o poderia vir de uma contenção das despesas com pessoal e/ou do fim da vinculação constituci­onal de verbas para educação e saúde. Houve resistênci­a, entre senadores, às duas soluções e o relator desistiu da segunda.

A desvincula­ção é debatida há mais de 20 anos, como forma de conferir maior flexibilid­ade ao Orçamento. Mas é preciso muito cuidado ao tratar de educação e saúde. A cautela é ainda mais necessária quando o governo tem uma folha corrida tão desastrosa nas duas áreas. Não houve, desde janeiro de 2019, um ministro da Educação digno desse título e deve ser muito difícil encontrar, na História republican­a, um ministro da Saúde tão inepto quanto Eduardo Pazuello. Mas o responsáve­l principal pelos desastres nos dois setores é mesmo o presidente Jair Bolsonaro.

Até o caminho da retomada neste ano, portanto, continua enevoado. O ministro da Economia, submetido ao regime de humilhaçõe­s e afagos por seu chefe, foi incapaz, até agora, de apontar soluções para a sustentaçã­o do cresciment­o e de manejar os instrument­os necessário­s para combinar a reanimação econômica e o ajuste das contas públicas.

Enquanto o governo derrapa, o mercado financeiro oscila, o dólar continua muito mais caro do que seria possível se houvesse menos incerteza e o câmbio segue pressionan­do a inflação. Os preços por atacado, com alta de 3,28% em fevereiro e 40,11% em 12 meses, segundo o IGPM-FGV, permanecem como um sinal de alerta para o perigo inflacioná­rio. Se o risco se agravar, o BC poderá ser forçado a elevar a taxa básica de juros, o único estímulo ainda mantido por um órgão federal. Anarquista­s podem ter alguma razão, mas de vez em quando um pouco de governo é indispensá­vel.

Covid já matou mais de 250 mil e o risco permanece num país emperrado e sem rumo

✽ JORNALISTA

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