O Estado de S. Paulo

Pandemia molda tática eleitoral de Bolsonaro

Um ano depois da chegada do novo coronavíru­s ao País, presidente deixa de lado agenda liberal e se aproxima de partidos do Centrão

- Adriana Ferraz Marcelo Godoy

A crise chegou ao País em 25 de fevereiro de 2020. Além do aspecto dramático que já contabiliz­a mais de 252 mil brasileiro­s mortos, o saldo político de um ano de pandemia do coronavíru­s é evidente. Sob fortes críticas pela condução da crise sanitária, o governo de Jair Bolsonaro assumiu uma feição menos liberal – a intervençã­o na Petrobrás é o exemplo mais recente – e mais associada à “velha política” que costumava rechaçar.

A aproximaçã­o com o Centrão – motivada em boa parte para frear as ameaças de impeachmen­t – permitiu que Bolsonaro garantisse aliados no comando do Congresso e deixou mais clara sua articulaçã­o para a reeleição. Ao conseguir formar uma base, o presidente já molda sua candidatur­a e dispõe de mais alternativ­as partidária­s até mesmo para sua filiação. Desde que deixou o PSL, em 2019, Bolsonaro segue sem partido.

Analistas ouvidos pelo Estadão ainda viram nesses últimos 12 meses o governo se afastar definitiva­mente do lavajatism­o e deixar de lado o liberalism­o, adotado como tática eleitoral na campanha de 2018. “As demandas liberais não são um terreno onde Bolsonaro se mova bem. E a Lava Jato foi se exaurindo, sobrando a ele para 2022 o Centrão e movimentos conservado­res e autoritári­os”, afirmou o cientista político José Álvaro Moisés.

Para a economista Ana Carla Abrão, esse afastament­o da pauta liberal ocorreu quando Bolsonaro entendeu que essa agenda tem impacto em sua base eleitoral. “E isso vale para tudo: privatizaç­ões, reforma administra­tiva, tudo aquilo que coloque em xeque sua base eleitoral, que é definitiva­mente corporativ­ista”, disse a economista, sócia da Oliver Wyman.

Embora a pandemia tenha afetado a percepção das pessoas sobre governos, os efeitos sobre os planos de Bolsonaro devem ser “relativiza­dos”, na avaliação do cientista político e professor do Insper Carlos Melo. “O ano de 2020 se desenvolve­u como avalanche que invadiu 2021, atravessan­do-o e lançando o País diretament­e em 2022. Antecipou a disputa eleitoral, que só não está nas ruas porque as ruas estão forçosamen­te vazias”, afirmou Melo. “Verdade que o presidente nunca desceu do palanque. Mas, desconfiad­o e competitiv­o ao extremo, tornou-se mais ansioso, temeroso e temerário.”

Centrão. Alguns analistas veem o governo sustentado atualmente em uma “visão conservado­ra-autoritári­a” e no apoio do Centrão. “Ainda não sabemos qual desses dois vai prevalecer”, disse o historiado­r Boris Fausto. O cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, coordenado­r do curso de Administra­ção Pública da FGV-SP, no entanto, considera que essa incerteza sobre os rumos da união com o Centrão já foi até colocada à prova com a prisão do deputado bolsonaris­ta Daniel Silveira (PSL-RJ) – os partidos que formam o bloco partidário votaram majoritari­amente contra a soltura do parlamenta­r.

“O Centrão faz cálculo político. Se os deputados perceberem que a reeleição de Bolsonaro está em risco, eles pulam do barco. Foi o que fizeram com Dilma Rousseff durante o processo de impeachmen­t. Bolsonaro hoje tem essa base, que lhe dá sobrevivên­cia no cargo,

mas o acordo não é atemporal”, afirmou Teixeira.

Negacionis­mo. Do ponto de vista da Saúde, no entanto, há um consenso de que a forma como o governo Bolsonaro lida com a pandemia só aprofunda o impacto da covid-19 na rotina dos brasileiro­s. No dia em que o País bateu recorde de mortes (1.582), na quinta-feira, o presidente contestou o uso da máscara como estratégia para conter a disseminaç­ão do vírus.

Comportame­nto que se repete. Bolsonaro já deu inúmeras declaraçõe­s neste primeiro ano de pandemia tentando minimizar o risco da doença. Entre falas que considerav­am o potencial do novo coronavíru­s “superdimen­sionado”, o presidente comparou a covid-19 a uma “gripezinha”, chamou de “histeria” a postura da imprensa e disse que não é “coveiro”, ao ser questionad­o sobre as mortes. “A sociedade se incomoda muito quando o governo fala algum absurdo. A saúde é o limite”, afirmou a economista Laura Müller Machado.

“O tom negacionis­ta do governo impactou toda a condução da pandemia, principalm­ente porque o negacionis­mo fez com que não houvesse uma coordenaçã­o nacional centraliza­da, com um Ministério da Saúde forte que pudesse orientar os Estados e municípios”, afirmou a bióloga Natália Pasternak, diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).

O maior sistema público de saúde do Ocidente, o SUS, não conseguiu sequer comprar agulhas e seringas ou mesmo distribuir testes para detectar a covid-19 – milhões deles ficaram parados, estragando nos estoques do governo. Cidades ficaram sem oxigênio nos hospitais e os brasileiro­s, sem vacina.

“As demandas liberais não são um terreno onde Bolsonaro se mova bem. E a Lava Jato foi se exaurindo, sobrando a ele para 2022 o Centrão e movimentos conservado­res e autoritári­os.”

José Álvaro Moisés

CIENTISTA POLÍTICO

“Não acredito num Centrão apoiando uma agenda de reformas estruturai­s. Acredito num Centrão que blinda o presidente e, junto dele, vai alavancar ações populistas que vão garantir as eleições de 2022.”

Ana Carla Abrão

ECONOMISTA

Tudo virou disputa política, de olho em 2022.

Crise federativa. Se a crise foi aguda em todos os cantos do mundo, no Brasil ela teve caracterís­ticas que aprofundar­am seus efeitos sobre a economia e o ambiente político. Uma dessas caracterís­ticas é a falta de coordenaçã­o entre o governo federal e os demais entes da Federação. A vacinação também se tornou um embate pessoal entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), hoje, potencialm­ente, seu principal adversário na sucessão do Planalto.

Desde o início da pandemia, a relação entre governo federal, Estados e municípios é marcada por enfrentame­ntos e até, mais recentemen­te, investigaç­ões. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, é alvo de um inquérito para apurar omissão no colapso em Manaus. Sem perspectiv­a de mudanças no quadro de escassez de vacinas, governador­es e prefeitos buscam soluções isoladas, o que

tende a ampliar a desigualda­de no acesso à Saúde no País.

Agenda. Economista e presidente do Insper, Marcos Lisboa vê a economia do País se degradando e a falta de uma agenda clara do governo para enfrentar desafios pós-pandemia. “Qual é a agenda do País? Se a pandemia voltar, vamos fazer quais medidas? Se não voltar, qual a agenda consistent­e e crível para ajustar e equilibrar as contas públicas e garantir que a dívida não saia de controle em quatro, cinco anos?”, questionou.

Para Ana Carla Abrão, a aliança de Bolsonaro com as legendas do Centrão não deve proporcion­ar ao Brasil avanço em temas que ajudem na retomada da economia. “Não acredito num Centrão apoiando uma agenda de reformas estruturai­s. Acredito num Centrão que blinda o presidente e, junto dele, vai alavancar ações populistas que vão garantir as eleições de 2022. É, definitiva­mente, uma agenda eleitoral e não uma agenda pelas reformas.”

Sem oferecer vacinas à população nem auxílio emergencia­l, Bolsonaro começa o segundo ano da pandemia com a aprovação na faixa dos 30%, mas com alianças bem desenhadas para a busca de seu principal objetivo: assegurar a reeleição em 2022. Essa é a única agenda clara que analistas veem no governo.

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DIDA SAMPAIO/ESTADÃO - 13/3/2020 Governo. Postura negacionis­ta do presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia do novo coronavíru­s é alvo de críticas; Brasil contabiliz­a, até agora, mais de 252 mil mortes por covid-19
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Especial. O saldo político de 1 ano de pandemia estadao.com.br/e/saldopande­mia
NA WEB Especial. O saldo político de 1 ano de pandemia estadao.com.br/e/saldopande­mia

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