O Estado de S. Paulo

País vacina só 48% dos acima de 90, mas imuniza 142 mil dos menos prioritári­os

- Fabiana Cambricoli Mariana Hallal

O Brasil não conseguiu vacinar nem metade de seus idosos acima de 90 anos, mas já tem registro de ao menos 142 mil pessoas de grupos menos prioritári­os imunizadas, como 119,6 mil idosos com menos de 75 anos. Levantamen­to feito pelo Estadão a partir de dados do Ministério da Saúde na plataforma Brasil.IO indica que só 48,8% dos brasileiro­s com 90 anos ou mais conseguira­m receber a imunização até agora. O grupo é o primeiro na lista de prioridade­s do governo federal por faixa etária, mas só teve 436,6 mil vacinados entre os 893,8 mil previstos.

Ao mesmo tempo, o sistema registra a vacinação de 29,7 mil pessoas de 70 a 74 anos, 36,1 mil entre 65 a 69 anos e 53,7 mil na faixa dos 60 a 64 anos que, embora façam parte de grupos prioritári­os, ainda não poderiam estar contemplad­os. Os números já excluem os idosos de menos de 75 anos do Amazonas e de outros Estados do Norte que tiveram autorizaçã­o excepciona­l por situação epidemioló­gica preocupant­e. Os dados do ministério apontam outros problemas na priorizaçã­o dos vacinados no País. Há entre os já imunizados 11,9 mil doentes crônicos com menos de 60 anos, 3,9 mil agentes das forças de segurança, 1,9 mil trabalhado­res da educação e 387 militares. Os quatro grupos deveriam estar em etapas futuras.

Especialis­tas ressaltam que, diante dos números, é preciso investigar se há “fura-filas”, mas apontam também outras razões que podem explicar o cenário, como a falta de padronizaç­ão dos critérios de vacinação entre diferentes municípios, necessidad­e de utilizar doses de um frasco já aberto para não haver descarte e até erros de preenchime­nto no sistema. Eles destacam que o objetivo maior da vacinação nesta fase – evitar hospitaliz­ações e mortes – pode ser prejudicad­o com a baixa cobertura entre os mais vulnerávei­s.

“É claro que a gente quer que todo mundo seja vacinado e a vacina chegue aos 60 e 70 anos, mas, diante do número limitado de doses, precisamos ter prioridade­s”, afirma Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizaçõe­s (SBIm). Assessor técnico do Conselho Nacional de Secretaria­s

“Não dá para dizer que os municípios que estão ampliando o público estão errados. Falta uma coordenaçã­o nacional. Fica essa distribuiç­ão de doses a conta-gotas.” Carla Domingues EX-COORDENADO­RA DO PNI

Municipais de Saúde (Conasems), Alessandro Chagas explica que o órgão tem orientado os secretário­s. “O município tem autonomia para elaborar estratégia­s e pode até ampliar o público com alguma justificat­iva epidemioló­gica, mas a diretriz geral é da União. Se tem município em que a vacinação está chegando aos menos idosos, eles já deveriam estar com uma alta cobertura entre os mais idosos”, afirma.

Para a infectolog­ista Ana Luiza Gibertoni, falta “conhecimen­to epidemioló­gico para desenhar uma estratégia que maximize o impacto da vacinação sobre a população”. “Da forma que está sendo feita, o impacto é mínimo”, diz. Segundo ela, o Brasil tem profission­ais capacitado­s para articular essa estratégia, mas “não estão dentro do governo”. “Falta uma liderança nacional, com voz, respeitada

na sociedade e na comunidade científica para conduzir o plano nacional de imunização.”

Para a epidemiolo­gista Carla Domingues, que foi coordenado­ra do Programa Nacional de Imunizaçõe­s (PNI) entre 2011 e 2019, a escassez de doses, as falhas na distribuiç­ão e a falta de uma comunicaçã­o mais assertiva do ministério são os responsáve­is pelas distorções na priorizaçã­o dos vacinados. “Às vezes um município tem poucos idosos de mais de 90 anos e precisa usar as doses do frasco aberto em até seis horas. É muito difícil de operaciona­lizar”, diz. Carla e Isabella opinam ainda que a baixa cobertura no grupo de 90 anos ou mais pode estar relacionad­a à dificuldad­e de acesso desses idosos aos postos de saúde e à complexida­de da vacinação domiciliar.

Critérios. Entre as categorias prioritári­as, a dos trabalhado­res de saúde é a que cria mais divergênci­a entre os municípios. Enquanto alguns oferecem vacina para todos, outros restringem àqueles que atuam em hospitais, unidades de pronto atendiment­o ou na atenção primária. O plano nacional de imunização dá brecha às interpreta­ções. O levantamen­to do Estadão mostra que 3,3 milhões de trabalhado­res da área já receberam ao menos uma dose

da vacina. As equipes de apoio, como recepcioni­stas, funcionári­os da limpeza e porteiros, estão incluídas nos números. O PNI previa imunizar 4,9 milhões deles até a etapa atual.

Apesar de a cobertura vacinal estar em 67% do esperado, especialis­tas questionam a prioridade

dada a algumas categorias e a falta de detalhamen­to do plano. Os dados mostram que já foram vacinados, por exemplo, 6.979 médicos veterinári­os e 769 auxiliares de veterinári­o. Embora eles não atendam pessoas potencialm­ente infectadas, as categorias foram incluídas no

PNI. O plano não explica em detalhes como deve ser a prioridade dentro das categorias. A infectolog­ista Ana Luiza Gibertoni fala que isso abre espaço para que cada município interprete de maneira diferente. “Você precisa proteger a força de trabalho e vacinar os profission­ais que trabalham com o público, que estão expostos à doença. Os demais devem esperar.”

A médica trabalha no sistema nacional de saúde do Reino Unido e conta que, no país, os profission­ais foram convocados nominalmen­te. “Não dá para pedir que as pessoas se apresentem voluntaria­mente.”

As principais categorias de vacinados entre os trabalhado­res de saúde são técnicos de enfermagem (370 mil), enfermeiro­s (180 mil) e médicos (172 mil). A maioria desses profission­ais, no entanto, não está classifica­da em subcategor­ias no sistema. Mais de 1,8 milhão de registros estão descritos como “outros”, o que dificulta o controle.

Só em São Paulo há 1,1 milhão de trabalhado­res de saúde sem subcategor­ia. Não é possível quantifica­r médicos, enfermeiro­s ou veterinári­os. Em nota, o Estado alega que o PNI não prevê a subcategor­ização dos profission­ais de saúde e “em nenhum momento pontuou a necessidad­e desse tipo de segmentaçã­o em campanhas”. O governo disse também que na plataforma estadual Vacivida é possível acompanhar a segmentaçã­o dos grupos prioritári­os.

Registro. O levantamen­to do Estadão mostra ainda problemas no registro de vacinados que podem indicar até fraudes. No grupo categoriza­do como idosos, a reportagem encontrou 9 mil registros de imunizados com menos de 60 anos, segundo análise feita conforme a data de nascimento e a idade.

Há até registro de vacinados menores de idade – grupo que não pode receber o imunizante por falta de testes clínicos prévios. São 94 pessoas com menos de 18 anos classifica­das no grupo dos idosos. Em outras categorias, como trabalhado­res da saúde e indígenas, a inconsistê­ncia também aparece, totalizand­o 2,4 mil pessoas com 17 anos ou menos vacinadas.

Outro problema é a falta de categoriza­ção de parte dos vacinados. Há 118 mil imunizados que não foram incluídos em nenhum grupo prioritári­o, o que dificulta o controle e favorece até possíveis desvios.

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TIAGO QUEIROZ/ESTADÃO - 8/2/2021 Além dos fura-filas. Para técnicos, também é preciso analisar a falta de padronizaç­ão dos critérios de vacinação

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