O Estado de S. Paulo

‘Falta de valorizaçã­o da ciência prejudicou combate à pandemia’

Sidney Klajner, presidente do Hospital Israelita Albert Einstein

- Fabiana Cambricoli

Ele critica a postura de médicos e governante­s que negaram evidências científica­s no controle ao novo coronavíru­s

Em 25 de fevereiro de 2020, o Brasil registrava seu primeiro caso de covid-19. O paciente, vindo da Itália, teve o diagnóstic­o confirmado no Hospital Israelita Albert Einstein. Presidente do centro médico, o cirurgião Sidney Klajner conta ao Estadão que não esperava que o País perderia totalmente o controle da doença e se tornaria um dos campeões em casos e óbitos. E diz, na semana em que o Brasil completou um ano de pandemia, que a falta de valorizaçã­o da ciência e de atitudes pautadas em evidências foram os principais fatores que levaram a isso.

• Quando o Einstein diagnostic­ou o primeiro caso, qual era a expectativ­a para a pandemia?

Naquele momento era a de que a gente teria um controle das pessoas que viessem a adquirir o vírus, um controle do isolamento desses pacientes e, por conta disso, a gente atingiria só uma pequena parcela da população. E, tomando os devidos cuidados, como higienizar as mãos, não espirrando nas mãos, evitando locais fechados, teria um controle total.

• Quando desandou? Quanto disso pode ser atribuído à falta de conhecimen­to que tínhamos sobre o vírus e quanto é responsabi­lidade das autoridade­s políticas?

Primeiro, a gente está diante de uma infecção por um vírus que ainda carece de muita informação sobre seu comportame­nto, então a primeira coisa é que a gente aprendeu muito com a doença no ano passado. Toda essa falta de conhecimen­to no início contribuiu, de fato, para a gente ter opiniões divergente­s e uma das grandes causas que levaram à falta de um comando pautado por ciência foi a presença de opiniões de pessoas que não detêm conhecimen­to e passaram a colocar posições muito focadas em ideologias. Isso, em um mundo que a gente vive de disseminaç­ão muito fácil por mídias sociais, acabou virando verdade e atraindo uma legião de seguidores. A gente via médicos falando que isso não ia passar de uma gripe e que o calor daqui não ia deixar que fosse igual à Europa. A gente viu governante­s preocupado­s com aspectos econômicos, estimuland­o o não lockdown. Então não dá para atribuir a um só culpado, mas a falta do conhecimen­to, talvez a falta da valorizaçã­o da ciência como o ponto norteador das atitudes e da adoção dessas medidas. E aí, obviamente, entram as nossas lideranças que preferiram acreditar neste ou naquele ponto, fizeram com que o comportame­nto da população brasileira em como enfrentar a pandemia e os investimen­tos e planejamen­tos fossem bastante prejudicad­os desde o início.

• Mas teve a postura do governo federal de ir contra a ciência…

Esse tipo de dúvida, de você atuar na economia independen­temente do resultado da saúde, isso aconteceu no mundo inteiro. A Inglaterra é um país que, no começo, adotou a postura de imunidade de rebanho e, depois de milhares de pessoas indo para as UTIs, abandonou essa estratégia e voltou para o modelo de controle por quarentena e lockdown. Então, a gente teria de, primeiro, ter uma liderança. E não necessaria­mente ia ser o presidente, poderia ser o secretário, o ministro da Saúde. No momento que surgiram divergênci­as, o ministro foi trocado. Tivemos duas trocas e sequer o plano do primeiro ministro foi adiante. Isso abriu espaço para governos assumirem a autonomia de organizare­m o enfrentame­nto nos Estados. Vira colcha de retalhos.

• O Einstein foi um dos hospitais que lideraram estudos que mostraram que remédios como a hidroxiclo­roquina são ineficazes. Na sua opinião, por que, mesmo com todas as evidências, médicos continuam prescreven­do?

Na medida que esse mundo científico sofre intervençã­o de ideologias políticas, as mídias sociais se tornaram um palco onde as pessoas podem falar o que querem. Não existe ciência com ideologia. A ciência exige que você tenha evidências para dizer se um medicament­o funciona ou não. Ciência e crença não combinam. Quando você usa um medicament­o que não vai trazer bem ao paciente, pelo contrário, pode causar evento adverso, a responsabi­lidade é de ambos (médico e paciente), mas o médico influencia muito. Aqueles colegas

“Nada numa questão de saúde pode ser dirigida, liderada ou idealizada sem conhecimen­to científico. Imagino que a gestão da saúde obriga que a gente tenha lideranças com conhecimen­to científico suficiente que vão dirigir o enfrentame­nto de qualquer situação de saúde.”

que insistiram no uso de tratamento­s que não são pautados por uma boa evidência científica talvez tenham sido influencia­dos por outros fatores que não o seu paciente como o centro do cuidado, não sendo pautados pela evidência científica.

• Vocês esperavam que viveriam um pico pior do que o primeiro com um ano de pandemia?

Esperar eu não esperava. Na verdade, eu tinha medo por causa do que vimos na Europa. O verão levou todo mundo para as ruas, para a praia, para as festas e eles passaram a experiment­ar uma segunda onda. Na verdade, eu esperava que não acontecess­e, mas existia uma chance consideran­do o comportame­nto

das pessoas aqui no Brasil como se a gente já tivesse vencido a pandemia.

• Você acha possível que redes de saúde mais estruturad­as colapsem diante da ameaça das novas variantes? O quanto isso te assusta?

Assusta menos do que assustou no começo da pandemia por causa da expertise em transforma­r alas não covid em covid e vice-versa. Assusta mais no sentido de termos que interrompe­r tratamento­s de doenças não covid.

• Os dados do Einstein mostram que vocês tiveram uma mortalidad­e por covid-19 de 16,6% entre os pacientes que foram para a UTI. Outros hospitais têm índices muito maiores, que ultrapassa­m 50%. Como foi possível ter um baixo índice?

O que importa no tratamento dessa doença é o suporte à vida, o tratamento multidisci­plinar e não um tratamento específico. Isso tem a ver com a qualidade de UTI, da disponibil­idade dos recursos. Por exemplo, 40% dos pacientes precisaram de diálise. A maior causa de mortalidad­e em Nova York foi a falta de diálise. E obviamente

influencia nessa mortalidad­e as condições da população. A população carente de cuidados médicos terá uma taxa de mortalidad­e muito maior. Talvez em um hospital como o nosso a gente tenha uma população com um controle melhor das suas doenças.

• Quando você acha que voltaremos a uma situação próxima da normalidad­e?

Eu estava lendo um artigo da Nature em que entrevista­ram uma centena de cientistas do mundo inteiro. E a opinião da maioria é de que a gente vai ter uma presença endêmica do coronavíru­s por um tempo extremamen­te longo. Eu não vejo muito próximo o retorno a uma vida normal.

• Qual é o aprendizad­o que fica de um ano de pandemia?

São vários aprendizad­os, mas talvez o principal é que quando a gente fala de saúde, isso é uma parte do conhecimen­to que diz respeito à ciência. A liderança não pode ser feita por políticos. Ela pode ter políticos, mas tem de respeitar o conhecimen­to científico. Esse é um grande aprendizad­o que falta para o nosso País.

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TABA BENEDICTO / ESTADÃO A perspectiv­a. ‘Eu não vejo muito próximo o retorno a uma vida normal’, afirma Klajner

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