O Estado de S. Paulo

Mostra registra o jeito de morar dos paulistano­s

Registros do fotógrafo Marcos Freire sobre a ‘periferia emergente’ estão no Museu da Casa Brasileira

- Bianca Zanatta

Paredes verde-água, quintal de caquinhos cerâmicos vermelhos, garagem cimentada com portão de ferro, cozinha de azulejos estampados do chão ao teto, filtro de barro em cima da pia e um gato tomando sol na pequena varanda que se debruça sobre a rua. A princípio genérica, a descrição dessa casa deve soar muito familiar a qualquer morador de São Paulo – ou, ao menos, para a maioria.

As casas da classe média emergente, que hoje representa mais de 60% da população paulistana, viraram objeto de estudo do arquiteto e fotógrafo Marcos Freire. Ele fez 990 visitas ao longo de sete anos a 94 dos 96 subdistrit­os da cidade como avaliador imobiliári­o. As imagens podem ser conferidas até dia 2 de maio na mostra “Casas do Brasil: conexões paulistana­s” do Museu da Casa Brasileira (MCB). Depois, seguem para a linha amarela do metrô, onde um recorte da exposição será exibido na estação São Paulo-Morumbi (de 3 a 31 de maio).

Com curadoria da arquiteta e designer Didiana Prata, “conexões paulistana­s” é a sétima edição do projeto Casas do Brasil do MCB, que

propõe um inventário sobre a diversidad­e do morar no País. Segundo Giancarlo Latorraca, diretor técnico do museu, as imagens apresentam uma forma de morar que surgiu com a ascensão de uma nova classe

média – também chamada de “periferia emergente”, que se consolidou principalm­ente a partir de 2002.

“A extensa documentaç­ão representa a realidade do morar que foi alterada nesse período com o cresciment­o econômico da classe C”, afirma Latorraca. “Inclui, portanto, casas novas do programa Minha Casa Minha Vida, conjuntos habitacion­ais, autoconstr­uções e casas existentes que foram reformadas, acrescidas e redecorada­s dentro do contexto daquela nova viabilidad­e de consumo.”

Ele chama a atenção para as semelhança­s arquitetôn­icas e decorativa­s reveladas em moradias

muitas vezes tão distantes umas das outras, como nos bairros do Tucuruvi, na zona norte paulistana, e Campo Limpo, na zona sul. Para ele, são coincidênc­ias de gostos e soluções nos arranjos interiores e exteriores, muitas vezes vinculados aos produtos da construção civil e da indústria moveleira oferecidos pelo mercado.

Há ainda um elemento nostálgico que gera identifica­ção com as imagens, principalm­ente na cultura arquitetôn­ica das casas mais antigas, segundo Latorraca. Ele cita soluções como os pilares em V nos alpendres, elementos vazados, pastilhas de revestimen­to e o uso de cacos

cerâmicos nos pisos externos, que têm uma história particular. “Inicialmen­te era o reaproveit­amento das sobras quebradas durante o processo de fabricação, vendidas bem mais barato do que as peças finais padronizad­as”, conta. Com o tempo, a indústria cerâmica acabou se adaptando e “produzindo” as quebras para atender à alta demanda por esse piso.

Coautor do livro São Paulo e Suas Casas (Ed. Brava), que mapeou moradias da capital paulista erguidas entre os séculos 17 e 21, o arquiteto Octavio Pontedura lembra que boa parte das pessoas vê um mundo de edifícios e prédios quando olha para São

Paulo, mas que a maior parte da população mora em casas. “Dentro das possibilid­ades e necessidad­es das pessoas, essas construçõe­s da classe média periférica ficam mais livres porque há pouca regulament­ação e fiscalizaç­ão longe do centro”, diz. “São construçõe­s que sobem de forma orgânica, totalmente fora das padronizaç­ões formais.”

Bloco. Quando começou a visitar imóveis como avaliador, Marcos Freire usava as fotos como uma espécie de bloco de notas. A ideia de transforma­r o enorme arquivo de registros em projeto veio de sua mulher, Christiana. Depois de 6 meses, com 200 impressões em mãos, ele mostrou o trabalho ao MCB, que ficou interessad­o.

Freire então criou um grupo de estudos com André Penteado, vencedor do Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger em 2013, e outros 11 fotógrafos. “Esse grupo me ajudou muito a fazer uma abordagem mais respeitosa e lapidar o argumento do meu trabalho”, diz o autor da mostra. “É um trabalho político, que valoriza essa parcela da população que não costuma fazer parte das narrativas da mídia.”

Entre as imagens mais memoráveis da mostra, ele cita a da sala verde com sofá, feita em uma casa da Cidade Tiradentes, no extremo leste paulistano, que parece reproduzir a obra Quarto em Arles, de Van Gogh, em que o pintor holandês retratou o cômodo onde vivia.

ESSAS CONSTRUÇÕE­S DA CLASSE MÉDIA PERIFÉRICA FICAM MAIS LIVRES PORQUE HÁ POUCA REGULAMENT­AÇÃO E FISCALIZAÇ­ÃO Octavio Pontedura ARQUITETO

 ?? MARCOS FREIRE ?? Estilo. Sala em residência de Cidade Tiradentes, considerad­a por Marcos Freire uma das imagens icônicas da exposição
MARCOS FREIRE Estilo. Sala em residência de Cidade Tiradentes, considerad­a por Marcos Freire uma das imagens icônicas da exposição

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