O Estado de S. Paulo

ÁFRICA UMA REGIÃO COMEÇA A SER RECONHECID­A

‘A Razão Africana: Breve História do Pensamento Africano Contemporâ­neo reúne ensaios sobre o continente esquecido

- ✽ RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR E FILÓSOFO. PROFESSOR TITULAR DA FAAP Rodrigo Petronio ✽

Desde as obras pioneiras de Manoel Querino, Pierre Verger, Alberto da Costa e Silva e Kabengele Munanga às pesquisas fundamenta­is de Lilia Moritz Schwarcz, Ordep Serra, Sueli Carneiro, Reginaldo Prandi, Silvio Almeida e Nei Lopes, o pensamento africano tem recebido cada vez mais destaque no Brasil. Nesse movimento, Na Casa de Meu Pai: A África na Filosofia da Cultura, referência mundial do filósofo ganês Kwame Anthony Appiah, publicada pela Contrapont­o em 1997, pode ser considerad­a um marco. Por sua vez, O Pensamento Africano no Século XX (Expressão Popular, 2016), conjunto de artigos de pesquisado­res brasileiro­s e africanos organizado por José Rivair Macedo, com prefácio de Severino Ngoenha, trouxe um novo fôlego ao debate.

Em 2017, surgiu a coleção A África e os Africanos, da editora Vozes, coordenada pelos professore­s José D’Assunção Barros, Álvaro Nascimento e José Jorge Siqueira. Ela tem publicado autores brasileiro­s e estrangeir­os seminais para a compreensã­o desse continente: Jean-Loup Amselle, Elikia M’Bokolo, Gwendolyn Midlo Hall, Marcel Dorigny, Bernard Gainot e Muniz Sodré.

No mesmo ano, o clássico Arte Africana de Frank Willett, talvez a melhor referência sobre o assunto, saiu em parceria entre a Imprensa Oficinal do Estado de São Paulo e as Edições Sesc. Some-se a isso o interesse crescente dos leitores brasileiro­s pela obra do filósofo camaronês Achille Mbembe, publicada pela editora n-1. Temos um painel muito positivo. E a esperança de que cresça ainda mais. Entretanto, ainda havia um elemento ausente: um panorama abrangente da produção intelectua­l africana atual.

Para suprir esta lacuna, a editora Todavia acaba de colocar no mercado A razão africana: breve história do pensamento africano contemporâ­neo, do historiado­r Muryatan Santana Barbosa, com orelha assinada por Rivair Macedo. Nascido em 1977 em Lund (Suécia), Muryatan é autor de Guerreiro Ramos e o Personalis­mo Negro (Paco, 2015), síntese da trajetória intelectua­l do sociólogo negro Alberto Guerreiro Ramos (1915-1982).

Professor adjunto do Bacharelad­o em Ciências e Humanidade­s, do Bacharelad­o em Relações Internacio­nais e do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial, todos da Universida­de Federal do ABC (UFABC), há anos Muryatan tem se dedicado ao pensamento africano e afrodiaspó­rico.

Inspirado em Marx e no filósofo da ciência Gaston Bachelard (1884-1962), Muryatan segue dois preceitos: 1. Investigar as matérias em seus detalhes, de modo a “analisar suas diferentes formas de desenvolvi­mento e rastrear seu nexo interno”. 2. Recorrer ao descritivi­smo, à medida que a “descrição é a finalidade da ciência”. Devido a isso, o contorno metodológi­co é impecável, pois consegue mapear uma variedade enorme de autores, obras e ideias, em dimensões continenta­is e em uma perspectiv­a transdisci­plinar.

A primeira parte analisa o protagonis­mo das ideias de Edward Blyden e as origens do nacionalis­mo africano (1870-1917), o entreguerr­as (1917-1939) e o papel da diáspora. Os primórdios desse pensamento mostra-se atrelado aos impasses da colonizaçã­o e dos paradigmas europeus. A unificação dos intelectua­is passa por projetos de descoloniz­ação, e por teorias alternativ­as ao racismo e ao colonialis­mo. Para tanto, era preciso formular uma personalid­ade africana.

Tomam forma então os conceitos de negritude e de pan-africanism­o, hipóteses de uma possível unificação étnica, política e cultural do continente. Trata-se de uma defesa de valores civilizaci­onais e (a seu modo) modernos específico­s da África. Essa primeira etapa realoca os papéis e as funções tanto da política quanto da cultura, que se tornam indissociá­veis.

A segunda parte se chama O Reino Político. E o subtítulo explica o teor desse segundo grande momento. Baseia-se na tese de que apenas por meio de forças políticas poderia haver a emancipaçã­o africana proposta pelos pensadores anteriores. Tomando como divisa as ideias de Kwame Nkrumah (1909-1972), presidente de Gana de 1960 a 1966, os intelectua­is passam a colocar a política no centro de todas as demais ações, orientação que dominou a produção africana ao longo das décadas de 1950 e 1960. Fortalece-se nesse momento o socialismo e o marxismo africanos.

Contudo, essas teorias críticas ressaltara­m os limites das utopias pan-africanist­as. E os intelectua­is se deparam então com alguns problema. Como organizar uma sociedade pós-colonial? A partir da hegemonia do neoliberal­ismo, nas décadas de 1980 e 1990, como evitar que os nacionalis­mos se convertam em uma rebalcaniz­ação neocolonia­l, como advertira Mbembe?

Para sanar esses impasses, Muryatan concentra sua argumentaç­ão final no conceito que nomeia a terceira parte da obra: o autodesenv­olvimento.

O autodesenv­olvimento passa a ser uma tônica dos intelectua­is das últimas décadas, representa­dos em grande parte por economista­s. Esse movimento se assenta em uma tomada de consciênci­a paulatina das especifici­dades e das contradiçõ­es do desenvolvi­mento e da modernidad­e africanos. A questão central? Como seria possível passar da economia política clássica africana a novas estratégia­s de desenvolvi­mento, conciliand­o as democracia­s e o capitalism­o contemporâ­neos.

Esse projeto se alicerça em alguns desafios: diversidad­e econômica, industrial­ização autônoma, integraçõe­s regional e continenta­l, aumento da qualidade de vida. E também contempla novas propostas: superação das “disparidad­es de gênero, raciais e étnicas”, sustentabi­lidade, e um tipo de desenvolvi­mento cada vez mais endógeno e democrátic­o.

A capacidade de síntese de Muryatan torna sua obra obrigatóri­a para qualquer um que pretenda se aprofundar em temas africanos. E também para aqueles que pretendam compreende­r as ideais contemporâ­neas de um ponto de vista complexo e policêntri­co. Afinal, esse talvez seja o maior imperativo e o maior desafio para a construção de um novo pensamento para o século 21.

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METROPOLIT­AN MUSEUM OF ARTS Identidade. Pintura sem título do artista norte-americano Kerry James Marshall de 2014
 ??  ?? A RAZÃO AFRICANA Autor: Muryatan S. Barbosa
Editora: Todavia 214 páginas R$ 59,90 R$ 36,90 (e-book)
A RAZÃO AFRICANA Autor: Muryatan S. Barbosa Editora: Todavia 214 páginas R$ 59,90 R$ 36,90 (e-book)

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