O Estado de S. Paulo

Vírus é o inimigo comum

- LOURIVAL SANT’ANNA EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

Opresident­e Jair Bolsonaro insinuou que o coronavíru­s é uma arma bacterioló­gica destinada a impulsiona­r o cresciment­o econômico chinês. A acusação é contrária às evidências. Mesmo partindo de um líder desacredit­ado internacio­nalmente, a afronta é perturbado­ra e temerária, e traz prejuízos ao Brasil.

Estudo publicado pela revista Nature no dia 17 de março de 2020, intitulado The proximal origin of SARS-CoV-2, descarta a origem desse vírus em laboratóri­o, afirmando que, pelo sequenciam­ento genômico, sua origem é animal.

Os autores são imunologis­tas e microbiólo­gos de institutos e universida­des da Califórnia; de Edimburgo, na Escócia; de Columbia, em Nova York; de Sydney, na Austrália e de New Orleans.

Depois de participar de uma missão da Organizaçã­o Mundial de Saúde (OMS) com 17 cientistas na China em fevereiro, o dinamarquê­s Ben Embarek, especialis­ta em transmissã­o de doenças de animais para humanos, também descartou que o vírus tenha saído de um laboratóri­o, e reiterou que sua origem provável são morcegos. No início da pandemia, o presidente Xi Jinping a classifico­u como “um teste para o sistema da China”. Em 2019, o PIB chinês cresceu 6,1%. A projeção era de cresciment­o igual em 2020. No entanto, com a pandemia, esse índice caiu para 2,3%, o pior em mais de quatro décadas, desde que a China abriu sua economia.

O presidente do Instituto Butantan, Dimas Covas, disse que os ataques do governo federal à China causam atrasos no fornecimen­to dos insumos. Isso depois de o instituto ter de suspender pela segunda vez a produção da Coronavac por esse motivo.

“Se a China quisesse, poderia mandar 20 milhões de doses para o Brasil”, me disse Charles Tang, presidente da Câmara de Comércio Brasil-China, profundo conhecedor da mentalidad­e chinesa.

Compare com o tratamento dispensado à Índia, rival regional da China. Há menos de um ano, os soldados dos dois países se enfrentava­m na fronteira. Desde então, os dois países têm procurado reduzir as tensões. A China forneceu nos últimos dias 5 mil respirador­es e 20 mil geradores de oxigênio para a Índia. Empresas chinesas estão trabalhand­o ininterrup­tamente para fabricar mais 40 mil unidades para ajudar a Índia a conter o seu surto, comparável hoje no mundo só ao do Brasil.

“O vírus é o inimigo comum da humanidade”, disse o porta-voz da chancelari­a chinesa, Wang Wenbin, ao comentar as declaraçõe­s de Bolsonaro. “A tarefa urgente agora é que todos os países se unam na cooperação e se esforcem por uma vitória rápida e completa sobre a epidemia. Nos opomos firmemente a qualquer tentativa de politizar e estigmatiz­ar o vírus.”

Os chineses não fazem alarde quando querem dar uma lição em um país. Apenas criam fatos consumados no terreno. Pergunte aos australian­os. Em abril do ano passado, o primeiro-ministro Scott Morrison pressionou por uma investigaç­ão internacio­nal sobre as origens do vírus na China, com inspetores da OMS com as mesmas prerrogati­vas que os da Organizaçã­o para a Proibição de Armas Químicas.

A partir daí o governo chinês passou a orientar os importador­es a restringir a compra de cevada, algodão, carne bovina, vinho, lagostas, carvão, cobre e madeira da Austrália. A cevada australian­a foi sobretaxad­a para 80,5%, o nível mais alto permitido, depois de um processo por dumping. Frigorífic­os australian­os perderam licença de exportação para a China.

O vinho australian­o recebeu tarifas entre 116% e 218%. A China baniu o carvão australian­o e começou a substituí-lo pelo colombiano e sul-africano. Sessenta navios australian­os estão parados na costa chinesa sem autorizaçã­o para descarrega­r seu carvão.

“O Brasil quer se tornar a próxima Austrália?”, perguntou-me Tang. A Austrália ao menos tem disputas territoria­is com os chineses no Mar do Sul da China. E o Brasil?

Os ataques do governo federal à China causam atrasos no fornecimen­to dos insumos

✽ É COLUNISTA DO ESTADÃO E ANALISTA DE ASSUNTOS INTERNACIO­NAIS

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