O Estado de S. Paulo

Regime de liberdade

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Decisão do TSE lembra que a necessária e constituci­onal liberdade de expressão não significa autorizaçã­o para cometer crimes.

Po rum placar de 4 a 3, o plenário do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) condenou recentemen­te um contador do Maranhão por propaganda eleitoral antecipada de cunho negativo contra o governador Flávio Dino (PCDOB). Em 2018, o sr. Everildo Bastos Gomes publicou, em sua conta no Instagram, um vídeo no qual Flávio Dino era chamado de ladrão e caracteriz­ado como nazista.

A decisão do TSE é controvert­ida, especialme­nte pelo enquadrame­nto jurídico dado ao caso. Como advertiu o presidente da Corte eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, em seu voto vencido, tratar como propaganda antecipada negativa “qualquer manifestaç­ão prejudicia­l a possível pré-candidato por cidadãos comuns transforma­ria a Justiça Eleitoral na moderadora permanente das críticas políticas na internet”.

De toda forma, a decisão do TSE lembra um aspecto importante – e muito esquecido nos tempos atuais – sobre as liberdades fundamenta­is. A necessária e constituci­onal liberdade de expressão não significa autorizaçã­o para cometer crimes.

São realidades diferentes, com consequênc­ias jurídicas inteiramen­te distintas. Uma coisa é o direito constituci­onalmente protegido de expressar opinião, por mais crítica que seja; outra bem diferente é agredir ou ameaçar, seja por meio de palavras, mensagens ou vídeos.

Em último termo, compete ao Judiciário reconhecer essa diferença, tanto para proteger a liberdade de expressão e de opinião como para punir as condutas criminosas. Mas a distinção dessas duas realidades não é apenas tarefa da Justiça. O exercício da cidadania envolve diferencia­r criteriosa­mente o que é liberdade de expressão e o que constitui crime.

Fazer essa diferencia­ção é especialme­nte relevante nos tempos atuais, em que todos os dias se recebem inúmeras mensagens, publicaçõe­s e vídeos. Há liberdade de expressão, mas nem tudo o que se recebe no celular e em outros meios pode ou deve ser compartilh­ado. Por exemplo, no caso julgado pelo TSE, o sr. Everildo Bastos Gomes não foi o autor do material ofensivo. Segundo relatou ao Estado, ele recebeu o vídeo num grupo de Whatsapp e depois o publicou em sua conta no Instagram – e foi precisamen­te esse compartilh­amento que motivou a condenação.

A Constituiç­ão de 1988 é pródiga na proteção das liberdades de expressão e de opinião. O art. 5.º assegura que “é livre a manifestaç­ão do pensamento”, assim como “é livre a expressão da atividade intelectua­l, artística, científica e de comunicaçã­o, independen­temente de censura ou licença”.

Esse último dispositiv­o serviu de base, por exemplo, para a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconheceu a impossibil­idade de censura prévia sobre biografias. “Cala a boca já morreu, quem disse foi a Constituiç­ão”, disse a ministra Cármen Lúcia no julgamento.

É livre a manifestaç­ão do pensamento, mas – e aqui está o cerne da questão – não cabe cometer um crime contra a honra de terceiro (calúnia, injúria ou difamação) e alegar que estava apenas “manifestan­do o pensamento”. Também não cabe cometer um crime contra a liberdade individual (ameaçar, por exemplo) e justificar-se dizendo que estava apenas exercendo sua liberdade política.

Num regime de liberdade, tal como vigora no Brasil após a Constituiç­ão de 1988, não existe crime de opinião. Cada um pode ter suas ideias e convicções, por mais estranhas que pareçam aos olhos dos outros, e tem o direito de defendê-las e difundi-las. No entanto, isso não autoriza, por exemplo, agredir quem quer que seja ou impedir o livre funcioname­nto das instituiçõ­es democrátic­as.

Nessa tarefa de distinguir o que é liberdade de expressão e o que é atividade criminosa, o Estado deve ser liberal, sem interpreta­ções restritiva­s de direitos. Mas também não pode ser ingênuo, o que colocaria em risco a liberdade de todos. Vale lembrar que, num utópico sistema de liberdade absoluta, simplesmen­te não haveria liberdade. O regime de liberdade é precisamen­te aquele que, com base em critérios e limites definidos em lei, diferencia o que é exercício da liberdade e o que é agressão, ameaça ou ofensa.

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