CAÇADORES DE RIOS OCULTOS
O geógrafo Luiz de Campos e o urbanista José Bueno ao lado de nascente do Córrego do Sapateiro, na Vila Mariana; projeto Rios e Ruas busca valorizar rios esquecidos e escondidos pela urbanização.
A água que sai do cano do prédio é um problema para os moradores das imediações da Praça Arquimedes Silva, na Vila Mariana, zona sul paulistana. E quando chove fica impossível estacionar o carro ali e descer sem molhar os pés. A água inunda toda a rua. Numa reunião de condomínio ficou decidido que era bom contratar um escritório de arquitetura e acabar com aquele aguaceiro sem fim.
A arquiteta visitou o local com a intenção inicial de deixar a vazão sob o asfalto e secar a sarjeta. Mas naquele exato momento, diante do prédio, o urbanista José Bueno e o geógrafo Luiz de Campos explicavam ao Estadão como funciona o projeto Rios e Ruas, criado por eles há dez anos, que tem por objetivo revalorizar os rios esquecidos e escondidos pela cidade. Repórter e fotógrafo com a mão na água que saía gelada daquele cano enferrujado, Campos observou: “Essa água é, na verdade, uma das nascentes do córrego do Sapateiro”.
O Sapateiro e boa parte dos 800 rios que estão escondidos sob o concreto e o asfalto da capital nascem próximos da Estação Ana Rosa do Metrô. A região alta da cidade, denominada Espigão de São Paulo, é uma crista que separa duas grandes bacias: de um lado, córregos e riachos descem em direção ao Tietê. Do outro, desembocam no Rio Pinheiros.
A missão da dupla Bueno e Campos é procurar por rios escondidos e revelar seu trajeto. Depois, juntar quanto mais gente possível, e realizar expedições na cidade para contar a história dos cursos d’água e tentar de alguma maneira mudar a mentalidade da população sobre eles.
Árvores. “Vivemos em uma cidade biofóbica. Acham que a raiz da árvore estraga a calçada, que a folha entope a calha, que o rio inunda e traz mau cheiro. A gente vai se afastando do que é natural. Nosso processo é repensar nossa relação com o que é vivo. O cuidado com os rios não é uma poesia, é proteger o que é vivo. É uma transformação do nosso olhar”, diz Bueno. Campos acrescenta: independentemente da ação do homem, os rios continuarão existindo. “Por mais metrôs, ruas e prédios que sejam construídos, o rio não morre”, argumenta.
Foi uma situação parecida no primeiro rio que Bueno e Campos descobriram juntos, em 2010. Em maio daquele ano, um amigo em comum os aproximou e os dois partilharam essa inquietação e essa indignação. Campos falou de seu trabalho sobretudo voltado para os “rios invisíveis" e Bueno lembrou de seus tempos na FAUUSP como estudante de Arquitetura e Urbanismo. Dias depois pegaram a bicicleta, o mapa hidrográfico da cidade e saíram por aí. Encontraram um riacho em um terreno baldio, que passava sob uma delegacia. Bueno falou com o delegado e este ajudou a dupla a pular um muro e seguir o rio até o final.
Exemplo europeu. Ao falar do assunto, Bueno costuma citar como exemplo projetos urbanísticos de cidades da Europa – por exemplo Freiburg, na Alemanha, onde canaletas são construídas entre a calçada e a rua para que as pessoas vejam os rios. Os alemães têm como meta até 2050 recuperar todos os rios e tirá-los do subterrâneo.
Ao Estadão, a arquiteta da Vila Mariana disse ter procurado a Prefeitura e sugerido aproveitar a água do Sapateiro e construir uma fonte no meio da praça. “Seria um jeito de informar a todos que ali nasce um rio”. O Sapateiro some novamente uns metros adiante e vai reaparecer no Parque do Ibirapuera.
Lá a água passa por um processo de limpeza e metros adiante já é possível ver peixes e aves no córrego, que vai desaguar no grande lago do parque. Seu trajeto prossegue sob a Avenida Juscelino Kubitschek e deságua no Rio Pinheiros.
O projeto de despoluição do Sapateiro tem permitido que garças se posicionem na foz do rio para pescar peixes que chegam vivos até ali. As águas do Sapateiro continuam pelo Rio Pinheiros, descem pelos Estados ao Sul do Brasil e continuam pela fronteira entre Uruguai e Argentina até desaguar no Oceano Atlântico.
• Proteção
“A gente vai se afastando do que é natural. O cuidado com os rios não é uma poesia, é proteger o que é vivo.” José Bueno URBANISTA