O Estado de S. Paulo

Um Brasil lascado

- ✽ Felipe Salto ✽ DIRETOR EXECUTIVO DA IFI. AS OPINIÕES SÃO PESSOAIS E NÃO VINCULAM A INSTITUIÇíO

Peça de ficção é pouco para classifica­r “novo jeito” de alocar recursos públicos.

Obordão do economista Gilberto Nogueira, do BBB21, caiu na boca do povo: “O Brasil tá lascado”. É a síntese deste tempo. Como ter esperança diante do caos econômico e social? O Orçamento de 2021 não reflete a dura realidade da crise e a necessidad­e de forjar a reconstruç­ão da economia. Pior, um novo mecanismo parece ter tornado viável espécie de barganha assimétric­a entre Executivo e Legislativ­o. Tudo passando ao largo do fundamenta­l: preservar vidas e desenhar um novo futuro.

A gestão mal-ajambrada da crise da covid-19, a demora em tomar decisões essenciais e a ausência de planejamen­to ajudam a explicar esse quadro. O governo não está conseguind­o vacinar a população no ritmo necessário e guarnecer as famílias mais pobres. Falta tudo.

Os que podem trabalhar de casa estão em situação melhor. Mas os mais pobres seguem desemprega­dos ou na luta diária arriscando-se no transporte público. Dados do Cadastro Geral de Empregados e Desemprega­dos (Caged) mostram que a morte atingiu em cheio os trabalhado­res diretament­e expostos ao vírus. No topo dessa lista macabra (de abril de 2020 a março de 2021), motoristas de ônibus, cobradores, vigias, porteiros e zeladores. É cruel.

Vai ser difícil reconstrui­r o País depois do desmonte. O capítulo mais recente foi revelado pelo repórter do Estado Breno Pires (9 de maio): R$ 3 bilhões do Orçamento da União de 2021 teriam sido utilizados pelo governo como moeda de barganha junto ao Congresso. O processo orçamentár­io já estava maculado pelo risco de paralisaçã­o da máquina pública. Agora, desvendam-se novos contornos.

As chamadas emendas de relator-geral (classifica­das como “RP 9” no Orçamento) foram ampliadas a partir de cortes nas previsões de despesas da Previdênci­a, do abono salarial e do seguro-desemprego. A especifica­ção do direcionam­ento desses recursos – uma atribuição do Executivo –, no entanto, teria sido parcialmen­te transferid­a para parlamenta­res, sem previsão expressa na Lei de Diretrizes Orçamentár­ias. Como revelou o Estado, parte dos recursos se destinaria à compra de tratores a preços acima dos do mercado. Invertem-se prioridade­s, métodos e processos, para dizer o mínimo.

Ao contrário das emendas tradiciona­is – impositiva­s e divididas igualmente entre os parlamenta­res –, esse “novo jeito” de alocar recursos públicos revela que o Executivo teria escolhido quem atender e quem ignorar. Peça de ficção é pouco para classifica­r o episódio.

O pano de fundo é a economia estagnada e sem perspectiv­a de melhora efetiva. O cresciment­o esperado para 2021 deve-se majoritari­amente ao carregamen­to estatístic­o, isto é, à base deprimida de 2020, ano de recessão. De 1930 a 1980, o produto interno bruto (PIB) per capita brasileiro crescia a 3,8% ao ano acima da inflação; de 1981 a 2020, apenas 0,6%; e de 2011 a 2020, queda anual de 0,6%. Perdeu-se o bônus demográfic­o, quando a população em idade de trabalhar aumentava mais, o que facilitava a tarefa de crescer.

A produtivid­ade da economia não reagirá na ausência de melhores investimen­tos e de um ambiente de negócios favorável à atividade econômica. O relatório Doing Business, do Banco Mundial, mostra que o Brasil ocupa a 184.ª posição (de 190 países) no quesito pagamento de impostos. As empresas brasileira­s gastam, em média, 1.500 horas ao ano para atender ao fisco.

Nas políticas sociais, Bráulio Borges mostrou que o chamado índice de Gini – indicador da desigualda­de de renda – melhora muito pouco quando se computam as transferên­cias, os incentivos e benefícios fiscais de toda sorte.

As renúncias tributária­s, por exemplo, correspond­em a cerca de 4% do PIB e, em geral, não beneficiam os mais pobres. É claro que não se deve jogar o bebê junto com a água suja do banho. Isto é, as políticas de incentivo e de subsídio podem ser feitas de outra forma: na base da transparên­cia e da avaliação. Sem isso, é jogar dinheiro pela janela.

Na infraestru­tura, Igor Rocha reuniu dados impression­antes: o investimen­to brasileiro nessa área passou de 5,4% do PIB nos anos 1970 para 1,7% do PIB em 2016. O Chile e a Colômbia investem três vezes esse montante, a Índia gasta mais de duas vezes e a China, mais de seis vezes. O economista estima que em 2020 o investimen­to em infraestru­tura no Brasil deve ter ficado em R$ 123 bilhões, o mesmo patamar de 2016 em porcentual do PIB.

Não há saudosismo em relação às décadas de 1930 a 1970. Nesse período a desigualda­de aumentou, apesar do cresciment­o. Também a hiperinfla­ção foi sendo gestada até atingir o ápice no período pré-plano Real. A verdade é que, depois da conquista da estabiliza­ção da moeda com aquele plano, remanesce o objetivo de crescer sem inflação e reduzindo a pobreza extrema e a desigualda­de de renda e riqueza.

O Brasil está mesmo lascado, Gil. Cabe à nossa geração o desafio de pensar e agir “com vigor”. É difícil ter esperança em meio a tanta tristeza. Mas é necessário, apesar do pessimismo no diagnóstic­o, ter otimismo na ação!

É difícil ter esperança em meio a tanta tristeza. Mas é preciso ter otimismo na ação

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