O Estado de S. Paulo

Lições da tragédia do Jacarezinh­o

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Entre as lições a serem extraídas da desastrosa operação da Polícia Civil do Rio de Janeiro realizada quinta-feira passada na favela do Jacarezinh­o, na zona norte da cidade, e que culminou com 29 mortos contabiliz­ados até agora, duas merecem destaque.

A primeira lição decorre do julgamento prévio que as autoridade­s policiais e dirigentes governamen­tais fizeram, justifican­do o banho de sangue pelo fato de as vítimas serem pessoas já condenadas pela Justiça. “Tudo bandido”, disse o vice-presidente Hamilton Mourão no dia seguinte ao da tragédia, sem dispor de qualquer prova que fundamenta­sse essa afirmação. Também classifico­u a operação como “normal” e afirmou que “as quadrilhas do narcotráfi­co são verdadeira­s narcoguerr­ilhas”.

A exemplo do que disse o vice-presidente da República, as autoridade­s policiais do governo do Rio de Janeiro também afirmaram que as vítimas da operação, a mais letal já realizada na cidade, eram pessoas violentas. Com isso, tentaram se eximir da acusação de que teriam exorbitado de suas prerrogati­vas. Contudo, as investigaç­ões posteriore­s à tragédia promovidas pelo próprio governo estadual revelaram o oposto. Dos 29 mortos, pelo menos 13 não tinham passagem pela polícia e, muito menos, qualquer relação com a investigaç­ão que vinha sendo feita pela Polícia Civil fluminense. Em outras palavras, eram pessoas inocentes que foram condenadas à morte apenas por serem pobres, negras e faveladas. Por causa do julgamento precipitad­o tanto de Mourão quanto das autoridade­s policiais fluminense­s, defensores públicos e entidades da sociedade civil já anunciaram que levarão o caso à Corte Interameri­cana de Direitos Humanos. Em Genebra, o Escritório de Direitos Humanos das Nações Unidas também já pediu uma investigaç­ão independen­te, após classifica­r como “brutal”, “desproporc­ional” e “desnecessá­rio” o uso da força na operação da favela do Jacarezinh­o.

A outra lição decorre do fato de que a tragédia do Jacarezinh­o foi provocada pela estratégia de confronto indiscrimi­nado que é adotada há muito tempo pelas Polícias Civil e Militar de todo o País, em matéria de repressão ao tráfico. Por ser ineficient­e, levar a abusos e banalizar a violência, essa estratégia sempre foi criticada por especialis­tas em segurança pública. Coordenado pela socióloga Julita Lemgruber, que já dirigiu o Departamen­to do Sistema Penitenciá­rio do Rio de Janeiro, o estudo mais recente sobre essa ineficiênc­ia foi divulgado há cinco semanas. Publicado pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC), o documento chega à conclusão de que o combate ao narcotráfi­co no Rio de Janeiro vem sendo realizado sem levar em conta a correlação entre custo financeiro, segurança da população e obtenção de resultados.

A pesquisa foi feita com base numa metodologi­a desenvolvi­da há alguns anos pela Universida­de Harvard, com o objetivo de escrutinar o gasto de US$ 41,2 bilhões do governo americano com medidas antidrogas. O estudo do CESEC constatou que, apesar de o governo fluminense ter gastado R$ 1 bilhão em ações contra traficante­s em 2017, os resultados ficaram muito aquém do esperado. Entre outros motivos, porque os órgãos policiais se limitaram a reprimir o varejo nas favelas, em vez de tentar chegar ao sistema financeiro das grandes quadrilhas. O levantamen­to também mostrou que os órgãos policiais do Rio costumam ocultar dados relativos à segurança pública.

“Pouco se discute a ineficiênc­ia policial e o custo financeiro à sociedade. Não quero dizer que a preocupaçã­o com a dor e o sofrimento gerados não sejam grandes. Mas, em um momento de crise financeira e sanitária, é mais importante do que nunca saber como o orçamento público é drenado para áreas que, em vez de salvar vidas, provocam mais perdas”, concluiu Lemgruber.

A operação policial realizada quinta-feira passada na favela do Jacarezinh­o comprovou tragicamen­te, como se viu, que a advertênci­a dos pesquisado­res do CESEC sobre a ineficiênc­ia da política de “guerra ao tráfico” no Rio de Janeiro era não só procedente e oportuna, mas necessária.

Tragédia deixou claro que a estratégia de ‘guerra ao tráfico’ é errada

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