Pertencimento vale mais do que a verdade
Na era da desinformação endêmica, as limitações cognitivas pessoais e da memória ajudam na difusão de notícias falsas
Há uma boa chance de que você tenha escutado pelo menos um desses rumores, todos falsos, transmitidos recentemente como se fossem verdade: que o presidente Joe Biden planeja forçar os americanos a comer menos carne; que o Estado da Virgínia está retirando do currículo escolar aulas de matemática avançada para promover equidade racial; e que autoridades de fronteira estão comprando em massa exemplares do livro da vice-presidente Kamala Harris para distribuir entre crianças refugiadas.
Todos esses rumores foram amplificados por atores facciosos. É talvez mais provável, porém, que você tenha ouvido isso de algum conhecido. E você pode ter percebido que esses ciclos de indignação provocada por notícias falsas são recorrentes.
Estamos em uma era de desinformação endêmica – e de mentiras francas. Muitos atores mal-intencionados estão ajudando a espalhálas. No entanto, os verdadeiros agentes, acreditam alguns especialistas, são forças sociais e psicológicas que tornam as pessoas propensas a compartilhar e acreditar, primeiramente, em notícias falsas.
“Por que percepções distorcidas a respeito de assuntos controvertidos na política e na ciência parecem tão persistentes e difíceis de ser corrigidas?”, questionou Brendan Nyhan, cientista político da Faculdade Dartmouth, em um novo artigo, publicado na revista da Academia Nacional de Ciências dos EUA.
Não é pela ausência de informações verdadeiras, que estão por toda parte. A exposição a informações verdadeiras, de qualquer jeito, nem sempre incute convicções condizentes com a realidade. Em vez disso, escreve Nyhan, um crescente corpo de evidências sugere que os principais vilões são “limitações cognitivas e de memória, motivações direcionadas para defender ou apoiar alguma identidade de grupo ou crença já existente e mensagens de outras pessoas e elites sociais”.
Colocado de maneira mais simples, as pessoas ficam mais suscetíveis a assimilar a desinformação quando esses três fatores entram em ação. Primeiramente, e talvez de maneira mais importante, isso acontece quando as condições na sociedade fazem as pessoas sentirem uma necessidade maior do que os cientistas sociais chamam de “endoagrupamento”, uma crença de que sua identidade social é uma fonte de força e superioridade - e que outros grupos podem ser culpados pelos seus problemas.
Por mais que gostemos de pensar em nós mesmos como seres racionais, que colocam a busca pela verdade acima de tudo, somos animais sociais que, por natureza, visam à sobrevivência. Em tempos de conflitos evidentes ou mudanças sociais, buscamos segurança em grupos. E isso nos deixa vorazes por informações, verdadeiras ou não, que nos permitem ver o mundo como um conflito que opõe nosso virtuoso endogrupo com um nefasto exogrupo.
Essa necessidade pode emergir especificamente de um senso de desestabilização da sociedade. Como resultado, a desinformação frequentemente prevalece em meio a comunidades que se sentem desestabilizadas por mudanças indesejáveis ou, no caso de algumas minorias, impotentes diante das forças dominantes.
Perceber a totalidade do real como um grandioso conflito contra inimigos ardilosos pode dar uma sensação de enorme reconforto. E talvez seja por isso que o maior vilão desta nossa era de desinformação possa ser, mais do que qualquer outro agente desinformante, o advento da polarização social que a define.
“No nível das massas, maiores divisões facciosas em relação a identidades sociais estão gerando intensa hostilidade entre partidários de posições opostas”, o que “parece ter aumentado a vulnerabilidade do sistema político à desinformação facciosa”, escreveu Nyhan em um artigo anterior.
A crescente hostilidade entre duas metades dos EUA alimenta desconfiança na sociedade, o que deixa as pessoas mais suscetíveis a rumores e mentiras. Isso também faz com que elas se agarrem mais as suas identidades políticas. E uma vez que o nosso cérebro passa para o modo “conflito entre identidades”, ficamos desesperadamente famintos por informações que afirmem esse senso de nós contra eles e muito menos preocupados com fatores como verdade ou autenticidade.
Nyhan afirmou que pode ser metodologicamente difícil marcar a relação precisa entre a polarização geral na sociedade e a disseminação da desinformação, mas há provas abundantes de que indivíduos com visões mais polarizadas ficam mais suscetíveis a acreditar em mentiras.
O segundo elemento que motiva a desinformação é a emergência de figuras no alto escalão da política que encorajam seus seguidores a se entregar a um desejo por desinformação que afirme uma identidade. Afinal, uma atmosfera de conflito político franco com frequência beneficia esses líderes, pelo menos no curto prazo, por lhes arrebanhar o apoio dessas pessoas.
E então há um terceiro fator: a migração para as redes sociais, que são poderosas plataformas para autores de mentiras, vetores de difusão de desinformação em sua essência e multiplicadoras de outros fatores de risco.
“A mídia mudou, o ambiente mudou, e isso tem potencialmente um grande impacto no nosso comportamento natural”, afirmou William Brady, psicólogo social da Universidade Yale. “Quando você posta, fica bastante atento à resposta que recebe, ao feedback social em termos de likes e compartilhamentos”, afirmou Brady. Então, quando a desinformação dialoga com mais impulsos sociais do que a verdade, ela obtém mais atenção na internet, o que significa que as pessoas se sentem recompensadas e encorajadas a disseminar mentiras nesse ambiente.
“Dependendo da plataforma, especialmente, humanos são muito sensíveis a recompensas sociais”, afirmou ele. Pesquisas demonstram que as pessoas que obtêm respostas positivas ao postar declarações inflamadas ou falsas ficam muito mais propensas a repetir esse comportamento no futuro. “Isso te afeta.”
Em 2016, as pesquisadoras de mídia Jieun Shin e Kjerstin Thorson analisaram uma base de dados com 300 milhões de tuítes a respeito da eleição de 2012. Elas descobriram que os usuários do Twitter “compartilham seletivamente mensagens de checagem de informações que favorecem seu próprio candidato e difamam o candidato do partido opositor”. E quando esses usuários encontravam uma checagem de informações revelando que seu próprio candidato fez algo errado, sua resposta não era se enfurecer com o político por ter mentido. Foi atacar quem checou as informações.
“Descobrimos que usuários do Twitter tendem a retuitar para mostrar aprovação, argumentar, ganhar atenção e entreter”, escreveu no ano passado o pesquisador Jon-patrick Allem, resumindo um estudo do qual foi coautor. “A verdade de um post ou a autenticidade de uma declaração não foram identificadas como motivo para retuitar.”
Em outro estudo, publicado no mês passado pela Nature, uma equipe de psicólogos acompanhou milhares de usuários que interagiam com notícias falsas. Entre republicanos submetidos à pesquisa a quem foi mostrada uma falsa manchete a respeito de imigrantes tentando entrar nos EUA (“Mais de 500 migrantes em caravana são presos com coletes-bomba”), a maioria a identificou como mentira; somente 16% qualificaram a afirmação como verdade. Mas quando os pesquisadores, em vez disso, perguntaram a esses voluntários se eles compartilhariam essa notícia, 51% afirmaram que sim.
“A maioria das pessoas não quer espalhar notícias falsas”, escreveram os autores do estudo. “Mas o contexto da rede social concentra sua atenção em outros fatores, que não a verdade e a autenticidade.”
Em uma sociedade altamente polarizada como a dos EUA hoje em dia – ou também Índia ou partes da Europa – esses incentivos estimulam pesadamente a solidariedade endogrupal e a derrogação exogrupal; o que não favorece o consenso da realidade nem os ideais abstratos da verdade e da autenticidade.