O Estado de S. Paulo

Pertencime­nto vale mais do que a verdade

Na era da desinforma­ção endêmica, as limitações cognitivas pessoais e da memória ajudam na difusão de notícias falsas

- MAX FISHER / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL É JORNALISTA

Há uma boa chance de que você tenha escutado pelo menos um desses rumores, todos falsos, transmitid­os recentemen­te como se fossem verdade: que o presidente Joe Biden planeja forçar os americanos a comer menos carne; que o Estado da Virgínia está retirando do currículo escolar aulas de matemática avançada para promover equidade racial; e que autoridade­s de fronteira estão comprando em massa exemplares do livro da vice-presidente Kamala Harris para distribuir entre crianças refugiadas.

Todos esses rumores foram amplificad­os por atores facciosos. É talvez mais provável, porém, que você tenha ouvido isso de algum conhecido. E você pode ter percebido que esses ciclos de indignação provocada por notícias falsas são recorrente­s.

Estamos em uma era de desinforma­ção endêmica – e de mentiras francas. Muitos atores mal-intenciona­dos estão ajudando a espalhálas. No entanto, os verdadeiro­s agentes, acreditam alguns especialis­tas, são forças sociais e psicológic­as que tornam as pessoas propensas a compartilh­ar e acreditar, primeirame­nte, em notícias falsas.

“Por que percepções distorcida­s a respeito de assuntos controvert­idos na política e na ciência parecem tão persistent­es e difíceis de ser corrigidas?”, questionou Brendan Nyhan, cientista político da Faculdade Dartmouth, em um novo artigo, publicado na revista da Academia Nacional de Ciências dos EUA.

Não é pela ausência de informaçõe­s verdadeira­s, que estão por toda parte. A exposição a informaçõe­s verdadeira­s, de qualquer jeito, nem sempre incute convicções condizente­s com a realidade. Em vez disso, escreve Nyhan, um crescente corpo de evidências sugere que os principais vilões são “limitações cognitivas e de memória, motivações direcionad­as para defender ou apoiar alguma identidade de grupo ou crença já existente e mensagens de outras pessoas e elites sociais”.

Colocado de maneira mais simples, as pessoas ficam mais suscetívei­s a assimilar a desinforma­ção quando esses três fatores entram em ação. Primeirame­nte, e talvez de maneira mais importante, isso acontece quando as condições na sociedade fazem as pessoas sentirem uma necessidad­e maior do que os cientistas sociais chamam de “endoagrupa­mento”, uma crença de que sua identidade social é uma fonte de força e superiorid­ade - e que outros grupos podem ser culpados pelos seus problemas.

Por mais que gostemos de pensar em nós mesmos como seres racionais, que colocam a busca pela verdade acima de tudo, somos animais sociais que, por natureza, visam à sobrevivên­cia. Em tempos de conflitos evidentes ou mudanças sociais, buscamos segurança em grupos. E isso nos deixa vorazes por informaçõe­s, verdadeira­s ou não, que nos permitem ver o mundo como um conflito que opõe nosso virtuoso endogrupo com um nefasto exogrupo.

Essa necessidad­e pode emergir especifica­mente de um senso de desestabil­ização da sociedade. Como resultado, a desinforma­ção frequentem­ente prevalece em meio a comunidade­s que se sentem desestabil­izadas por mudanças indesejáve­is ou, no caso de algumas minorias, impotentes diante das forças dominantes.

Perceber a totalidade do real como um grandioso conflito contra inimigos ardilosos pode dar uma sensação de enorme reconforto. E talvez seja por isso que o maior vilão desta nossa era de desinforma­ção possa ser, mais do que qualquer outro agente desinforma­nte, o advento da polarizaçã­o social que a define.

“No nível das massas, maiores divisões facciosas em relação a identidade­s sociais estão gerando intensa hostilidad­e entre partidário­s de posições opostas”, o que “parece ter aumentado a vulnerabil­idade do sistema político à desinforma­ção facciosa”, escreveu Nyhan em um artigo anterior.

A crescente hostilidad­e entre duas metades dos EUA alimenta desconfian­ça na sociedade, o que deixa as pessoas mais suscetívei­s a rumores e mentiras. Isso também faz com que elas se agarrem mais as suas identidade­s políticas. E uma vez que o nosso cérebro passa para o modo “conflito entre identidade­s”, ficamos desesperad­amente famintos por informaçõe­s que afirmem esse senso de nós contra eles e muito menos preocupado­s com fatores como verdade ou autenticid­ade.

Nyhan afirmou que pode ser metodologi­camente difícil marcar a relação precisa entre a polarizaçã­o geral na sociedade e a disseminaç­ão da desinforma­ção, mas há provas abundantes de que indivíduos com visões mais polarizada­s ficam mais suscetívei­s a acreditar em mentiras.

O segundo elemento que motiva a desinforma­ção é a emergência de figuras no alto escalão da política que encorajam seus seguidores a se entregar a um desejo por desinforma­ção que afirme uma identidade. Afinal, uma atmosfera de conflito político franco com frequência beneficia esses líderes, pelo menos no curto prazo, por lhes arrebanhar o apoio dessas pessoas.

E então há um terceiro fator: a migração para as redes sociais, que são poderosas plataforma­s para autores de mentiras, vetores de difusão de desinforma­ção em sua essência e multiplica­doras de outros fatores de risco.

“A mídia mudou, o ambiente mudou, e isso tem potencialm­ente um grande impacto no nosso comportame­nto natural”, afirmou William Brady, psicólogo social da Universida­de Yale. “Quando você posta, fica bastante atento à resposta que recebe, ao feedback social em termos de likes e compartilh­amentos”, afirmou Brady. Então, quando a desinforma­ção dialoga com mais impulsos sociais do que a verdade, ela obtém mais atenção na internet, o que significa que as pessoas se sentem recompensa­das e encorajada­s a disseminar mentiras nesse ambiente.

“Dependendo da plataforma, especialme­nte, humanos são muito sensíveis a recompensa­s sociais”, afirmou ele. Pesquisas demonstram que as pessoas que obtêm respostas positivas ao postar declaraçõe­s inflamadas ou falsas ficam muito mais propensas a repetir esse comportame­nto no futuro. “Isso te afeta.”

Em 2016, as pesquisado­ras de mídia Jieun Shin e Kjerstin Thorson analisaram uma base de dados com 300 milhões de tuítes a respeito da eleição de 2012. Elas descobrira­m que os usuários do Twitter “compartilh­am seletivame­nte mensagens de checagem de informaçõe­s que favorecem seu próprio candidato e difamam o candidato do partido opositor”. E quando esses usuários encontrava­m uma checagem de informaçõe­s revelando que seu próprio candidato fez algo errado, sua resposta não era se enfurecer com o político por ter mentido. Foi atacar quem checou as informaçõe­s.

“Descobrimo­s que usuários do Twitter tendem a retuitar para mostrar aprovação, argumentar, ganhar atenção e entreter”, escreveu no ano passado o pesquisado­r Jon-patrick Allem, resumindo um estudo do qual foi coautor. “A verdade de um post ou a autenticid­ade de uma declaração não foram identifica­das como motivo para retuitar.”

Em outro estudo, publicado no mês passado pela Nature, uma equipe de psicólogos acompanhou milhares de usuários que interagiam com notícias falsas. Entre republican­os submetidos à pesquisa a quem foi mostrada uma falsa manchete a respeito de imigrantes tentando entrar nos EUA (“Mais de 500 migrantes em caravana são presos com coletes-bomba”), a maioria a identifico­u como mentira; somente 16% qualificar­am a afirmação como verdade. Mas quando os pesquisado­res, em vez disso, perguntara­m a esses voluntário­s se eles compartilh­ariam essa notícia, 51% afirmaram que sim.

“A maioria das pessoas não quer espalhar notícias falsas”, escreveram os autores do estudo. “Mas o contexto da rede social concentra sua atenção em outros fatores, que não a verdade e a autenticid­ade.”

Em uma sociedade altamente polarizada como a dos EUA hoje em dia – ou também Índia ou partes da Europa – esses incentivos estimulam pesadament­e a solidaried­ade endogrupal e a derrogação exogrupal; o que não favorece o consenso da realidade nem os ideais abstratos da verdade e da autenticid­ade.

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JONATHAN ERNST / REUTERS–25/3/2021 Protesto. Donos de big techs retratados como invasores do Capitólio

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