O Estado de S. Paulo

Bolsonaro ostenta lema das milícias

- ✽ José Nêumanne ✽ JORNALISTA, POETA E ESCRITOR

Em 23 de abril, em atrasadíss­ima ida a Manaus, o presidente Jair Bolsonaro posou, sorridente, para fotografia segurando cartaz com os dizeres “CPF cancelado”. Fê-lo ao lado do apresentad­or do programa de TV Alerta Nacional, Sikêra Jr., e dos ministros da Saúde, Marcelo Queiroga, da Educação, Milton Ribeiro, e do Turismo, Gilson Machado Neto, líder da banda de forró Brucelose (infecção bacteriana que afeta milhares de pessoas no mundo). A expressão é usada por defensores de policiais que matam suspeitos em operações, como era, à época da ditadura militar, a caveira com ossos em xis usada pelo Esquadrão Le Coq, criado em 1965 para vingar a morte do detetive da Polícia Civil do Rio de Janeiro Milton Le Cocq. Essa scuderie inspirou grupos de extermínio de “bandidos” por policiais, entre os quais o delegado do Dops paulista Sérgio Fleury.

Fernando de Barros e Silva escreveu na revista Piauí o artigo País cancelado, que começa assim: “Jair Bolsonaro seguiu à risca o que se exige da mulher de César. Não basta ser miliciano, tem que parecer miliciano”. Este, segundo ele, seria o estilo “milícia ostentação”. Não que a famiglia presidenci­al omita que o deputado federal Jair Messias foi ao julgamento do chefe miliciano Adriano da Nóbrega e o homenageou em discurso na Câmara. Sob ordens dele, seu primogênit­o, Flávio, nomeou para próprio gabinete familiares do acusado de chefiar o Escritório do Crime, empreiteir­a de assassínio­s de aluguel. E entregou-lhe a Medalha Tiradentes na cela. Quando Nóbrega foi executado por policiais civis baianos e fluminense­s, Flávio, já acusado de extorquir funcionári­os-fantasmas na Assembleia Legislativ­a do Estado do Rio de Janeiro (Alerj), lamentou a execução do criminoso em aparente queima de arquivo.

A chacina na favela do Jacarezinh­o, da qual as vítimas dos policiais só foram identifica­das três dias depois, foi comemorada pelo presidente e por seu eventual sucessor, Hamilton Mourão. Este Estadão contou, assim que a lista foi revelada, que um terço das vítimas – nove em 27 – não era de réus na Justiça. A Polícia Civil do Rio, notória suspeita de corrupção, saiu pela tangente de que alguns eram por ela investigad­os. A desculpa – amarela como a cor da Bandeira Nacional, usada como manto protetor por fascistoid­es que elogiam assassinos e torturador­es notórios, caso do coronel Brilhante Ustra – seria a de que eram, no mínimo, suspeitos. Não se sabe se são mesmo ou se passaram a sê-lo depois de fuzilados. Mas sabe-se algo que, ao que parece, presidente e vice desconhece­m: o sistema judicial brasileiro não admite a pena de morte. Se nem pela Justiça, imagine por forças policiais.

O jornalista Edilson Martins anotou, em texto no Facebook: “Quem achaca as comunidade­s, tortura seus moradores, elimina os que se negam a pagar por seus serviços –- luz, tv, gás, telefone, segurança, entre outros negócios – são as milícias. Estas são lideradas por policiais militares expulsos da corporação, ou ainda na ativa, bombeiros idem, além de policiais civis infratores, e têm parceria com políticos que ajudam a eleger: governador­es, deputados federais e vereadores. O atual presidente teve ligações, juntamente com os filhos, com milicianos notórios”. E acrescento­u: “Nunca houve megaoperaç­ão, em nenhum governo, contra as milícias. Na cidade do Rio elas ocupam e dominam 53% do município. O tráfico controla 15,14% do território da cidade. A favela de Jacarezinh­o não tem, ou pelo menos não tinha, a presença das milícias”.

Para ilustrar, o colega citou uma frase do patriarca esquerdist­a Lula a respeito de massacre similar perpetrado sob o comando do aliado Sérgio Cabral, do MDB, ao lado de quem comentou invasão da mesma polícia em 7 de abril de 2007 (há 14 anos): “Nessa ação de vocês no Complexo do Alemão, tem gente que acha que é possível enfrentar a bandidagem com pétalas de rosa ou jogando pó-de-arroz”. Sobre outro emedebista, Michel Temer, hoje conselheir­o-mor de papai Jair Messias, Edilson registrou: “O atual ministro da Defesa, Braga Neto, já foi comandante de uma intervençã­o militar do Exército durante quase um ano no Estado do Rio. Nunca realizou incursão contra as milícias na cidade do Rio. Contra o tráfico as incursões foram cinematogr­áficas”.

Não será inútil lembrar que, na véspera do massacre, Bolsonaro visitou o anspeçada do filho Flávio, Cláudio Castro, no Palácio Guanabara. Pode ter sido mera coincidênc­ia, mas não deve ser omitido. De vez que manchetes diversioni­stas serão sempre bem-vindas em momentos de tensão como os ora produzidos no Palácio do Planalto pela CPI da Covid no Senado.

O ex-secretário nacional de Segurança Pública Luiz Eduardo Soares lembrou: “Com o Jacarezinh­o, a depender da reação do STF, se legitimará, preparando o próximo passo, o lance final contra a democracia: a institucio­nalização definitiva da autonomia policial, de que o excludente de ilicitude será um (funesto) detalhe”. A esse respeito, o fecho do editorial Com todas as palavras, deste jornal, vaticina “‘O recado está dado’, advertiu Bolsonaro. Seria imprudente ignorá-lo”. É isso aí.

Sorrindo diante do cartaz de ‘CPF cancelado’, presidente mostra de que lado está

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