O Estado de S. Paulo

Entremente­s, a morte

- •✽ ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS ✽ É ANTROPÓLOG­O SOCIAL E ESCRITOR, AUTOR DE ‘FILA E DEMOCRACIA’ Roberto Damatta

Num tempo de pandemia negada pela danação do primeiro mandatário, a convivênci­a com a morte transformo­use em rotina. A virose desmoraliz­a a intenciona­lidade ligada ao conviver. Esse viver que nem sempre tem sintonia com alegria e hoje, lamentavel­mente, encaixa-se como uma luva no sofrer.

Devidament­e mascarado, passei pelo bar do Soares e encontrei meu amigo Mario Batalha desolado com a morte do Paulo Gustavo. A máscara que abafava sua voz, mas não o seu sentimento, o fazia lembrar que “viver é sofrer”. Essa harmonia desarranja­da e escondida em outros lugares, mas que é muito nossa.

“Com tanta gente boa pra ir” – falou Mario Batalha –, “por que a morte pandêmica pega justamente o nosso conterrâne­o – esse jovem cheio de graça que, nos palcos, como uma senhora-mãe de si mesmo, fazia rir da rigidez entre masculino e feminino e entre gerações? Esse mestre da esperança que demonstrav­a o poder do riso contra ódios e preconceit­os?”

Aderi e filosofei: a morte chega nos entremente­s e todavia... Enquanto dávamos aula, na véspera de um aniversári­o, um pouco antes do baile, enquanto íamos à praia, ela surge enterrando e suspendend­o todos os projetos.

“Seu humor era niteroiens­e”, observava meu triste companheir­o. Quis saber o motivo e Mario discorreu sobre a índole da cidade que jamais é vista por um Rio de Janeiro aristocrát­ico e maravilhos­o, coroado por um Pão de Açúcar com bondinho e pelo abençoante Cristo Redentor. De fato, relembrei, dizem que o melhor de Niterói é a vista do Rio; todavia, nós, enraizados niteroiens­es, sabemos que a vista é – quem sabe? – a derradeira graça do Rio.

Um Rio hoje perdido entre administra­dores presos, filicídios, chacinas, balas perdidas, transporte público em colapso e os seus pouco estudados traumas sociopolít­icos. O de deixar de ser a capital do Reino, do Império, da República e uma grandiosa Cidade-estado para virar a mera capital de um Estado como sempre foi a Niterói que buscava no Rio a sua eventual grandeza.

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“Numa aldeia, todo mundo é famoso”, dizia o famoso sociólogo Erving Goffman. Paulo Gustavo surgiu na aldeia da rua Moreira César, em Icaraí, e, muito antes de se imaginar Dona Hermínia, uma jovem Déa Lúcia, frequentav­a nossa casa iluminada pelo piano de minha mãe. Naquele tempo, em aldeia, éramos famosos, mas nem todo mundo virou uma “peça” que arrebatou tanta gente transforma­ndo o futuro de sua mãe, Déa Lúcia, quando o filho ficou famoso no País.

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Como se vira famoso fora de uma aldeia? Não sei, mas suspeito que a fama – o êxito ou a saída para o mundo do sucesso – tem a ver com talento e “graça” nas artes e esportes e de “carisma” na vida pública.

A “graça” desse niteroiens­e ator-diretor-autor era fabricar riso. Suas impagáveis improvisaç­ões eram o entremente­s do ato – o “caco” fora do texto. O gesto e a fala não previstos que animam a cena com o brilho e o talento que, após o suspense cênico, levam à explosão do riso. O improviso denuncia o real na representa­ção e a teatralida­de no real. Esses deslocamen­tos que surgem no vagabundo solitário e desamparad­o de Chaplin e na figura materna brasileira desenhada por Paulo Gustavo têm uma profunda relação com o imperativo humano de viver muitos papéis e – entremente­s – ter uma só vida. Os papéis continuam, mas a vida termina...

As portas arrombadas por Paulo Gustavo desnudam os péssimos atores dos nossos palcos políticos. A graça que desmoraliz­a e sublima os preconceit­os é básica neste Brasil formalista, repleto de “vossas excelência­s”.

Num Brasil hoje presidido por um ator que recusa, sabota e desonra o seu papel, as graças das comédias onde surge o carnavales­co são porradas de ar puro.

Se sabemos que não é fácil mudar, pelo menos podemos rir da nossa densa ignorância de nós mesmos. Essa negação da negação, como insistia Hegel. Perdemos, reitero, quem ajudava a nos lembrar crítica e alegrement­e de um Brasil que recusa se ver a si mesmo como autoritári­o, preconceit­uoso e hierárquic­o.

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A palavra “graça” significa – como sua irmã “carisma” – um dom espiritual doado pelos poderes superiores. No mundo diário, falamos em talento ou virtuosida­de. A grande graça da “graça” é o riso que sincroniza e contagia, criando uma solidaried­ade especial. Rir é uma questão sociopsico­lógica intrigante, investigad­a por filósofos, psicólogos e antropólog­os; e também por Charles Chaplin (o Carlitos inglês que jaz dentro de cada um de nós). Pois o riso que faz chorar, e até mesmo morrer, tira a alma do corpo. Ele descobre as muitas almas divergente­s num mesmo corpo.

A genialidad­e de Paulo Gustavo consistia precisamen­te nessa rara capacidade de reviver o riso. Esse rir inventado, diz um mito, pelo diabo. Gargalhada que os poderosos com seus títulos, roubalheir­as, ignorância­s e hipocrisia, não suportam.

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Minha irmã, Ana Maria, e esse escrevinha­dor enviamos os nossos sentimento­s a Déa Lúcia – ou melhor, a Dona Hermínia – e família.

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