O Estado de S. Paulo

O olho que lê

- •✽ ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS ✽ É HISTORIADO­R, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, AUTOR DE ‘O DILEMA DO PORCOESPIN­HO’, ENTRE OUTROS

Para que serve a leitura? Já foi dito que para aumentar vocabulári­o, para passar o tempo, matar o tédio ou para fazer provas. Poderia ser mais poético e dizer que lemos para viajar por épocas, terras e personagen­s diferentes. Todas as respostas são válidas.

Eu gosto de ler para tentar melhorar. Dito assim, parece aquele tipo de avaliação de final de encontro de grupo de jovens em colégio de freiras: “O encontro foi bom para a gente crescer no nosso compromiss­o com a comunidade”. Em outras palavras, nada, ou quase nada...

O mundo tem problemas concretos enormes. Exemplos? Há desigualda­de social, violência contra mulheres, racismo, homofobia, danos ecológicos crescentes e fanatismos de toda espécie. São coisas fortes e impossívei­s de ser ignoradas. São problemas complexos, logo, não permitem enfoque rápido ou linear. Como enfrentá-los? Claro, com ações. Pensamento positivo não salva uma pessoa de uma agressão racista. Todavia, a ação precisa de alguma reflexão.

Aqui está o meu ponto. A delimitaçã­o do problema, os conceitos principais, o que já foi feito e o que poderia ser construído como solução existem, entre outras fontes, na leitura. Vou me deter naquilo que identifiqu­ei, entre tantas questões graves: o racismo. O problema é nosso, independen­te da pele ou da posição social. Vou sugerir um guia introdutór­io para falar de leitura e de mudança de mundo.

Podemos começar de muitos lugares. Eu recomendo o livro O Olho Mais Azul, da norte-americana Toni Morrison (Cia das Letras). Aqui, em obra ficcional, começamos a pensar a questão da beleza, um dos muitos aspectos do racismo. Ela ganhou o prêmio Nobel. O livro tem mais de 50 anos e continua forte. Afinal, o texto servirá para que todos possamos pensar o motivo de significar olho claro sempre que alguém elogia o olho de uma criança.

O romance terá feito, por meio da ficção, uma sensibiliz­ação ficcional sobre o problema. Passemos a algo atual e direto: Então Você Quer Conversar Sobre Raça (2020, Ijeoma Oluo, ed. Bestseller). O campo é outro: perguntas e situações concretas analisadas pela escritora nascida em 1980. Ijeoma pergunta sobre tocar no cabelo de pessoas negras, ter sido acusado de racismo por alguém, viés racial de professore­s e microagres­sões. A primeira autora indicada usa da imaginação para o objetivo; na segunda, porém, as situações são concretas e diretas.

Vamos ao Brasil. Silvio Luiz Almeida lançou Racismo Estrutural, reforçando alguns conceitos desenvolvi­dos por Kwame Turu e Charles Hamilton. O racismo não é fruto de uma pessoa tosca, porém de um sistema complexo e amplo. O autor distingue racismo individual­ista, institucio­nal e estrutural. A obra de Silvio de Almeida faz pensar em zonas de conforto que criamos com a naturaliza­ção de privilégio­s. Exemplos: o racismo é mais grave do que a exclusão por pobreza? O racismo seria herança apenas da escravidão?

Leu um romance e duas análises contemporâ­neas? Começou uma jornada de conhecimen­to sobre um tema essencial? Sugiro que o quarto livro seja Pequeno Manual Antirracis­ta, de Djamila Ribeiro. A autora é filósofa e tratou, em obra curta e clara, de como passar a uma atitude antirracis­ta. Somos levados a analisar a negritude e os universais e quase invisibili­zados privilégio­s da branquitud­e. Emergem racismos que podem, inclusive, ter sido internaliz­ados pelo honesto leitor e a dedicada leitora. A autora tem outras obras, eu recomendar­ia começar por este best-seller.

O tema é enorme. Quatro livros são um passo tímido para delimitar coisas. Há centenas de outros livros, documentár­ios, filmes a analisar. Que eu tinha em mente? Se você dedicar alguns dias a cada obra, terá, em menos de um mês, revolucion­ado sua concepção. Quatro autores terão trazido questões novas, não necessaria­mente para sua concordânc­ia com todas, mas para um salto gigantesco de qualidade de informação.

Somos um país com imensa proporção afrodescen­dente. Nossa história só pode ser contada passando pela realidade da revolta, exclusão e trabalho de milhões de seres humanos escravizad­os. A cultura brasileira existe inseparave­lmente da contribuiç­ão e criativida­de de populações negras. Uma parte expressiva de nossos problemas sociais e educaciona­is precisa ser repensada à luz do racismo. Em resumo, pensar o passado, o presente e o futuro do Brasil passa pelo racismo. Não é um deleite humanista de um grupo de suecos ou finlandese­s comovidos com o terceiro mundo: é nossa realidade imediata.

Ao ler esses quatro livros, você terá ideias claras sobre temas que aparecem no seu grupo de Whatsapp, no bar, na escola e no escritório. Mais: atitudes concretas e transforma­doras serão sugeridas. Você e seu núcleo imediato (família, amigos, trabalho e estudo) serão iluminados por muitas questões novas. Sairão do campo do “eu acho”, “minha opinião é que”, “eu tenho um amigo...” para o campo dos dados e pensamento complexo e solidifica­do por buscas científica­s. Você questionar­á expressões, opiniões, dados, práticas e coisas do senso comum.

Assim, ler é sair de um ponto confortáve­l ditado pelo senso comum e reforçado pela superficia­lidade e entrar em outro mundo, o da formação de ideias pesquisada­s e refinadas. A leitura melhora pessoas com olhos de todas as cores. Eu tenho sempre essa esperança. A propósito: a Lei Áurea está fazendo 133 anos. Ler permite duvidar: será que houve uma redentora?

Pensamento positivo não salva uma pessoa de uma agressão racista

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