O Estado de S. Paulo

Decisão do STF derruba 3,4 mil patentes

Decisão permite que 3.435 patentes, muitas de medicament­os de alto custo para tratamento­s de câncer, HIV, diabetes e disfunção erétil, possam ter genéricos; relação inclui ainda fórmula de droga que pode ajudar no tratamento da covid-19

- Rafael Moraes Moura

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu derrubar patentes de produtos farmacêuti­cos e de equipament­os da área de saúde que já tinham sido prorrogada­s para além do prazo-limite original, de até 20 anos. A decisão vai permitir que 3.435 produtos, muitos deles medicament­os de alto custo, tenham agora a patente derrubada, permitindo a produção de genéricos.

Por 9 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem derrubar patentes de produtos farmacêuti­cos e de equipament­os da área de saúde que já tinham sido prorrogada­s para além do prazo limite original, de no máximo 20 anos. A decisão vai permitir, por exemplo, que 3.435 patentes, muitas delas de medicament­os de alto custo e que tinham se beneficiad­o por prorrogaçã­o acima desse prazo, sejam agora derrubadas, permitindo a produção de genéricos.

Segundo levantamen­to da Procurador­ia-geral da República (PGR), pelo menos 65 medicament­os de alto custo que estavam nessa situação devem ser atingidos pela decisão do STF, dentre os quais remédios para tratamento de câncer, HIV, diabetes, hepatites virais, disfunção erétil e obesidade. A relação inclui ainda uma fórmula fabricada por um laboratóri­o japonês (Favipiravi­r) que pode auxiliar em tratamento de pessoas com covid-19. Na prática, portanto, o Supremo abre caminho para a produção de genéricos desses medicament­os, em um momento em que o Sistema Único de Saúde (SUS) sofre com os efeitos da pandemia do novo coronavíru­s.

Com a decisão do STF, de um universo de 30.648 patentes de diversos setores prolongada­s que estão atualmente em vigor, 3.435 (11,2% do total) são da área farmacêuti­ca. Esse grupo será afetado com a decisão do tribunal. Em outros setores da indústria, porém, as extensões já dadas não serão derrubadas.

O tribunal concluiu ontem o julgamento de uma ação da Procurador­ia-geral da República (PGR) que contesta a Lei de Propriedad­e Industrial, em vigor desde 1996. Na última quintafeir­a, o Supremo já havia derrubado uma norma que permite a prorrogaçã­o do prazo de patentes concedidas pelo Instituto Nacional de Propriedad­e Industrial (Inpi).

Diferencia­ção. Agora, o STF delimitou o alcance do entendimen­to firmado na semana passada. Por conta da pandemia, o relator da ação, ministro Dias Toffoli, propôs soluções diferencia­das para as patentes de produtos farmacêuti­cos e equipament­os da área de saúde, separando-as das demais. Nesses casos, a decisão do Supremo vai retroagir, ou seja, vai atingir as patentes já prolongada­s, que estão em vigor há mais de 20 anos e, portanto, devem cair agora.

Nos demais setores, as patentes esticadas não serão atingidas, ou seja, continuam preservada­s. Em termos jurídicos, o STF “modulou” a decisão nesse ponto específico, impedindo a retroativi­dade para o resto da indústria. O placar dessa questão foi de 8 a 3. Para os ministros Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e Edson Fachin, todas as patentes estendidas, independen­temente do setor, deveriam cair.

“A situação excepciona­l caracteriz­ada pela emergência de saúde pública decorrente da covid-19 elevou dramaticam­ente a demanda por medicament­os e por equipament­os de saúde de forma global, com a elevação dos ônus financeiro­s para a administra­ção pública e para o cidadão na aquisição desses itens”, disse Toffoli.

As patentes servem para garantir a empresas e autores de invenções um privilégio temporário, por meio da garantia de exclusivid­ade na exploração econômica de um determinad­o produto. Segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), entre 2008 e 2014, a quase totalidade dos produtos farmacêuti­cos tiveram as patentes estendidas por um prazo superior a 20 anos. De acordo com o TCU, a exploração protegida pela patente de produtos farmacêuti­cos dura, em média, 23 anos, sendo comum a concessão de patentes que ao final terão durado por 29 anos ou até mais.

Pandemia. Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes propôs que o Supremo restringis­se os efeitos sobre as patentes farmacêuti­cas já prorrogada­s, sugerindo que fossem derrubadas apenas aquelas que pudessem ser destinadas ao combate à pandemia. “Seria extremamen­te complexo definir, dentro do universo de cerca de 3.435 patentes da área de saúde, quais teriam e quais não teriam indicação de uso no combate à covid-19, justamente por ser uma doença com repercussõ­es em inúmeras áreas clínicas (neurológic­a, cardiológi­ca, pulmonar, renal, etc). Quem iria definir quais invenções são e quais não são destinadas ao combate à pandemia?”, questionou Toffoli.

Segundo a Lei de Propriedad­e Industrial, as patentes têm prazo de 15 anos a 20 anos, tempo contado a partir da data do pedido (depósito) feito ao Inpi. Depois desse período, podem ser feitas versões genéricas de medicament­os, equipament­os e outras invenções livremente. Um dispositiv­o da mesma lei, no entanto, permitia a prorrogaçã­o desse prazo, o que foi considerad­o inconstitu­cional pelo STF. Para o tribunal, a norma viola os princípios da segurança jurídica, da ordem econômica e do direito à saúde, prejudican­do a livre concorrênc­ia e a defesa do consumidor.

A partir de agora, não se pode mais prorrogar o prazo das patentes para nenhum produto em nenhuma hipótese. Ou seja: nos novos pedidos, o prazo de vigência das patentes deve ficar limitado ao período de 20 anos a partir do depósito do pedido feito ao Inpi.

O advogado Thiago do Val, especialis­ta em direito empresaria­l, apontou que o julgamento traz inseguranç­a jurídica para empresas farmacêuti­cas que contavam com a prorrogaçã­o da validade das patentes. “É um sinal de alerta. Apesar de beneficiar a indústria dos genéricos e de certa forma a sociedade, o julgamento afeta anos de planejamen­to das indústrias repentinam­ente, inclusive perante ao cenário internacio­nal, o que deveria ser amplamente discutido no Congresso”, disse o advogado.

Desinvesti­mentos no País e inseguranç­a jurídica são algumas das consequênc­ias que a indústria prevê após a decisão anunciada ontem pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo executivos do setor ouvidos pelo “Estadão”. O Supremo derrubou as patentes farmacêuti­cas e de materiais da área de saúde que já foram prorrogada­s e estão em vigor há mais de 20 anos no Brasil.

Com a decisão, medicament­os de referência hoje com patentes válidas podem ganhar a concorrênc­ia de genéricos a partir da data em que a decisão do STF for publicada no Diário Oficial. Entram nessa categoria remédios, por exemplo, de uso oncológico, para o tratamento de doenças como diabetes, HIV e hepatites virais – responsáve­is por boa parte do faturament­o das empresas farmacêuti­cas, principalm­ente multinacio­nais.

Na avaliação de um desses executivos, os ministros do Supremo teriam tratado o setor de forma diferente em relação a outras áreas tecnológic­as, como o agronegóci­o e informátic­a. Procurado, o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuti­cos (Sindusfarm­a) não comentou a decisão do STF. Já o setor de genéricos viu a decisão como “histórica” (mais informaçõe­s nesta página).

Preços. Um medicament­o genérico chega ao mercado com preço 35% menor do que o de referência. Com o passar do tempo e a entrada de novos concorrent­es, os valores tendem a cair ainda mais. Essa é uma das vantagens imediatas para o consumidor, dizem especialis­tas em direito sanitário e saúde pública. Para Eloísa Machado, professora e coordenado­ra do Supremo em Pauta, da FGV Direito SP, a decisão também reestabele­ce a normalidad­e em relação à proteção intelectua­l no País.

Eloísa diz que a extensão da patente no Brasil estava em desacordo com o que prevê o Acordo Trips (tratado internacio­nal, assinado em 1994, que prevê o regramento dos aspectos de propriedad­e intelectua­l). “Não é correto e honesto dizer que vai haver desinvesti­mentos no País.”

Para Daniel Dourado, médico, advogado sanitarist­a e pesquisado­r da USP e da Universida­de de Paris, a medida é acertada, mas não basta para franquear o acesso futuro dos brasileiro­s a medicament­os de ponta. “Funciona para os medicament­os químicos, mas não para os imunobioló­gicos, por exemplo”, afirma.

O recente apoio dos Estados Unidos à quebra de patentes das vacinas contra a covid- 19 levantou essa questão em relação aos chamados imunobioló­gicos, vacinas, medicament­os monoclonai­s e remédios para doenças autoimunes, por exemplo.

Ainda que as patentes desses medicament­os e vacinas fossem quebradas, poucos países teriam laboratóri­os aptos a produzi-los, pois são produtos que requerem transferên­cia de tecnologia. “São medicament­os que não chegam a 10% das compras do SUS, mas respondem por cerca de 50% dos gastos” diz Dourado.

Já o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho, do Instituto Brasileiro de Propriedad­e Intelectua­l (IBPI), elogiou a solução encontrada pelo STF. “Neste momento de pandemia, a decisão atendeu os argumentos da defesa para proteger o direito à saúde e a viabilizaç­ão de remédios mais baratos para a população”, afirmou Coêlho.

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JONNE RORIZ/ESTADÃO-24/3/2010 Peso. Medicament­o genérico chega ao mercado 35% mais barato do que o de referência

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