Decisão do STF derruba 3,4 mil patentes
Decisão permite que 3.435 patentes, muitas de medicamentos de alto custo para tratamentos de câncer, HIV, diabetes e disfunção erétil, possam ter genéricos; relação inclui ainda fórmula de droga que pode ajudar no tratamento da covid-19
O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu derrubar patentes de produtos farmacêuticos e de equipamentos da área de saúde que já tinham sido prorrogadas para além do prazo-limite original, de até 20 anos. A decisão vai permitir que 3.435 produtos, muitos deles medicamentos de alto custo, tenham agora a patente derrubada, permitindo a produção de genéricos.
Por 9 votos a 2, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu ontem derrubar patentes de produtos farmacêuticos e de equipamentos da área de saúde que já tinham sido prorrogadas para além do prazo limite original, de no máximo 20 anos. A decisão vai permitir, por exemplo, que 3.435 patentes, muitas delas de medicamentos de alto custo e que tinham se beneficiado por prorrogação acima desse prazo, sejam agora derrubadas, permitindo a produção de genéricos.
Segundo levantamento da Procuradoria-geral da República (PGR), pelo menos 65 medicamentos de alto custo que estavam nessa situação devem ser atingidos pela decisão do STF, dentre os quais remédios para tratamento de câncer, HIV, diabetes, hepatites virais, disfunção erétil e obesidade. A relação inclui ainda uma fórmula fabricada por um laboratório japonês (Favipiravir) que pode auxiliar em tratamento de pessoas com covid-19. Na prática, portanto, o Supremo abre caminho para a produção de genéricos desses medicamentos, em um momento em que o Sistema Único de Saúde (SUS) sofre com os efeitos da pandemia do novo coronavírus.
Com a decisão do STF, de um universo de 30.648 patentes de diversos setores prolongadas que estão atualmente em vigor, 3.435 (11,2% do total) são da área farmacêutica. Esse grupo será afetado com a decisão do tribunal. Em outros setores da indústria, porém, as extensões já dadas não serão derrubadas.
O tribunal concluiu ontem o julgamento de uma ação da Procuradoria-geral da República (PGR) que contesta a Lei de Propriedade Industrial, em vigor desde 1996. Na última quintafeira, o Supremo já havia derrubado uma norma que permite a prorrogação do prazo de patentes concedidas pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi).
Diferenciação. Agora, o STF delimitou o alcance do entendimento firmado na semana passada. Por conta da pandemia, o relator da ação, ministro Dias Toffoli, propôs soluções diferenciadas para as patentes de produtos farmacêuticos e equipamentos da área de saúde, separando-as das demais. Nesses casos, a decisão do Supremo vai retroagir, ou seja, vai atingir as patentes já prolongadas, que estão em vigor há mais de 20 anos e, portanto, devem cair agora.
Nos demais setores, as patentes esticadas não serão atingidas, ou seja, continuam preservadas. Em termos jurídicos, o STF “modulou” a decisão nesse ponto específico, impedindo a retroatividade para o resto da indústria. O placar dessa questão foi de 8 a 3. Para os ministros Marco Aurélio Mello, Rosa Weber e Edson Fachin, todas as patentes estendidas, independentemente do setor, deveriam cair.
“A situação excepcional caracterizada pela emergência de saúde pública decorrente da covid-19 elevou dramaticamente a demanda por medicamentos e por equipamentos de saúde de forma global, com a elevação dos ônus financeiros para a administração pública e para o cidadão na aquisição desses itens”, disse Toffoli.
As patentes servem para garantir a empresas e autores de invenções um privilégio temporário, por meio da garantia de exclusividade na exploração econômica de um determinado produto. Segundo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU), entre 2008 e 2014, a quase totalidade dos produtos farmacêuticos tiveram as patentes estendidas por um prazo superior a 20 anos. De acordo com o TCU, a exploração protegida pela patente de produtos farmacêuticos dura, em média, 23 anos, sendo comum a concessão de patentes que ao final terão durado por 29 anos ou até mais.
Pandemia. Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes propôs que o Supremo restringisse os efeitos sobre as patentes farmacêuticas já prorrogadas, sugerindo que fossem derrubadas apenas aquelas que pudessem ser destinadas ao combate à pandemia. “Seria extremamente complexo definir, dentro do universo de cerca de 3.435 patentes da área de saúde, quais teriam e quais não teriam indicação de uso no combate à covid-19, justamente por ser uma doença com repercussões em inúmeras áreas clínicas (neurológica, cardiológica, pulmonar, renal, etc). Quem iria definir quais invenções são e quais não são destinadas ao combate à pandemia?”, questionou Toffoli.
Segundo a Lei de Propriedade Industrial, as patentes têm prazo de 15 anos a 20 anos, tempo contado a partir da data do pedido (depósito) feito ao Inpi. Depois desse período, podem ser feitas versões genéricas de medicamentos, equipamentos e outras invenções livremente. Um dispositivo da mesma lei, no entanto, permitia a prorrogação desse prazo, o que foi considerado inconstitucional pelo STF. Para o tribunal, a norma viola os princípios da segurança jurídica, da ordem econômica e do direito à saúde, prejudicando a livre concorrência e a defesa do consumidor.
A partir de agora, não se pode mais prorrogar o prazo das patentes para nenhum produto em nenhuma hipótese. Ou seja: nos novos pedidos, o prazo de vigência das patentes deve ficar limitado ao período de 20 anos a partir do depósito do pedido feito ao Inpi.
O advogado Thiago do Val, especialista em direito empresarial, apontou que o julgamento traz insegurança jurídica para empresas farmacêuticas que contavam com a prorrogação da validade das patentes. “É um sinal de alerta. Apesar de beneficiar a indústria dos genéricos e de certa forma a sociedade, o julgamento afeta anos de planejamento das indústrias repentinamente, inclusive perante ao cenário internacional, o que deveria ser amplamente discutido no Congresso”, disse o advogado.
Desinvestimentos no País e insegurança jurídica são algumas das consequências que a indústria prevê após a decisão anunciada ontem pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo executivos do setor ouvidos pelo “Estadão”. O Supremo derrubou as patentes farmacêuticas e de materiais da área de saúde que já foram prorrogadas e estão em vigor há mais de 20 anos no Brasil.
Com a decisão, medicamentos de referência hoje com patentes válidas podem ganhar a concorrência de genéricos a partir da data em que a decisão do STF for publicada no Diário Oficial. Entram nessa categoria remédios, por exemplo, de uso oncológico, para o tratamento de doenças como diabetes, HIV e hepatites virais – responsáveis por boa parte do faturamento das empresas farmacêuticas, principalmente multinacionais.
Na avaliação de um desses executivos, os ministros do Supremo teriam tratado o setor de forma diferente em relação a outras áreas tecnológicas, como o agronegócio e informática. Procurado, o Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) não comentou a decisão do STF. Já o setor de genéricos viu a decisão como “histórica” (mais informações nesta página).
Preços. Um medicamento genérico chega ao mercado com preço 35% menor do que o de referência. Com o passar do tempo e a entrada de novos concorrentes, os valores tendem a cair ainda mais. Essa é uma das vantagens imediatas para o consumidor, dizem especialistas em direito sanitário e saúde pública. Para Eloísa Machado, professora e coordenadora do Supremo em Pauta, da FGV Direito SP, a decisão também reestabelece a normalidade em relação à proteção intelectual no País.
Eloísa diz que a extensão da patente no Brasil estava em desacordo com o que prevê o Acordo Trips (tratado internacional, assinado em 1994, que prevê o regramento dos aspectos de propriedade intelectual). “Não é correto e honesto dizer que vai haver desinvestimentos no País.”
Para Daniel Dourado, médico, advogado sanitarista e pesquisador da USP e da Universidade de Paris, a medida é acertada, mas não basta para franquear o acesso futuro dos brasileiros a medicamentos de ponta. “Funciona para os medicamentos químicos, mas não para os imunobiológicos, por exemplo”, afirma.
O recente apoio dos Estados Unidos à quebra de patentes das vacinas contra a covid- 19 levantou essa questão em relação aos chamados imunobiológicos, vacinas, medicamentos monoclonais e remédios para doenças autoimunes, por exemplo.
Ainda que as patentes desses medicamentos e vacinas fossem quebradas, poucos países teriam laboratórios aptos a produzi-los, pois são produtos que requerem transferência de tecnologia. “São medicamentos que não chegam a 10% das compras do SUS, mas respondem por cerca de 50% dos gastos” diz Dourado.
Já o advogado Marcus Vinicius Furtado Coêlho, do Instituto Brasileiro de Propriedade Intelectual (IBPI), elogiou a solução encontrada pelo STF. “Neste momento de pandemia, a decisão atendeu os argumentos da defesa para proteger o direito à saúde e a viabilização de remédios mais baratos para a população”, afirmou Coêlho.