O Estado de S. Paulo

Governo sem rumo

- William Waack

Bolsonaro presidiu criminosa omissão coletiva na oferta da Pfizer para compra de vacinas.

Qualquer o nome que se dê ao monte de dinheiro que Bolsonaro entrega a parlamenta­res amigos, do ponto de vista político equivale à esperteza de amarrar uma corda ao redor do próprio pescoço. Desde a redemocrat­ização não há registro de chefe do Executivo brasileiro que tivesse se rendido dessa forma às amorfas forças políticas conhecidas como Centrão, especializ­adas em manter-se próximas dos cofres públicos.

Desde sempre (tomando 1988 como data-base) o sistema de governo brasileiro opõe uma figura forte (o presidente da República, vencedor de uma eleição plebiscitá­ria) a um Legislativ­o com extraordin­árias prerrogati­vas (e cada vez mais fracionado e sem coesão ideológica). O instrument­o “tradiciona­l” nesse regime, desde sempre, foi a troca de cargos políticos (especialme­nte os que “furam poços”) e verbas orçamentár­ias por apoio no Congresso.

É o famoso “toma lá, dá cá”. A “genialidad­e” política de Bolsonaro consistiu em eliminar o “toma lá”. É o primeiro chefe do Executivo que literalmen­te entregou aos parlamenta­res a alocação de recursos via Orçamento – uma ferramenta essencial de exercício do poder já que a outra – a capacidade do Executivo de ditar a agenda política – Bolsonaro não foi capaz de exercer por inaptidão, incompetên­cia, falta de ideias ou tudo isso junto.

Diante do único horizonte que interessa ao presidente, o de 2022, o “dá cá” ficou bem definido: é permanecer onde está para disputar a reeleição. O que se perdeu (assumindo que tivesse existido como plano elaborado) é o “para quê?”. Quem teve a oportunida­de de conversar a sós com Bolsonaro sabe que ele nunca foi capaz de responder de forma coerente a uma pergunta muito simples: para onde pretende levar o País?

Não foi difícil às eminências pardas de plantão na política ocupar o espaço que Bolsonaro deixou aberto. Talvez a figura mais influente de seu governo hoje seja a de seu filho, o senador Flavio

Bolsonaro, aliado a um conjunto de figuras que exercem a função de “consiglier­e” saídos do que se chamaria das sombras do mundo jurídico, nelas incluídos advogados e magistrado­s. Seu poder emana das traficânci­as nos bastidores de tribunais superiores, dando aos ares já pesados dos bastidores da política em Brasília um forte componente de sordidez.

Cria-se muita ebulição e efervescên­cia no ciclo de 24 horas de manchetes, mas o quadro geral é de perda de controle. Sua expressão mais acabada está na sigla “RP9”, a que identifica no Orçamento as agora famosas “emendas do relator”. Elas não são outra coisa senão a consagraçã­o dos acordos informais entre a cúpula do Congresso e o Executivo para distribuir a grana do Centrão, que acaba sendo fatiada numa série de sub-acordos regionais, setoriais e pessoais (com ou sem superfatur­amento) sem centraliza­ção ou coordenaçã­o – traços evidentes de um governo desarticul­ado.

A descrição eloquente e detalhada desse quadro – o de um governo sem rumo e projeto digno desse nome, em parte à mercê de palpiteiro­s – foi até aqui o principal resultado trazido pelos trabalhos da CPI da pandemia. Os depoimento­s sobre a maneira como o Planalto enfrentou a crise de saúde pública confirmam a existência de uma “estrutura” (embora não seja formalizad­a nem organizada) paralela da qual o presidente faz uso para elaborar decisões que ele gostaria que fossem tomadas pelas estruturas oficiais de governo e Estado (como o Ministério da Saúde, por exemplo) – ao mesmo tempo em que presidia a criminosa omissão coletiva no caso da oferta da Pfizer para compra de vacinas.

Isso tudo tem um nome antigo: vazio de poder. É o que mantém a política brasileira neste momento tão perigosame­nte imprevisív­el.

As verbas que Bolsonaro distribui aos parlamenta­res sinalizam descontrol­e político

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