O Estado de S. Paulo

Concedam a volúpia aos humildes

SOCIÓLOGO. E-MAIL: CONTATO@PAULODELGA­DO.COM.BR

- Paulo Delgado

Quem neste mundo vai de livre e espontânea vontade para o hospício? Se a maternidad­e fosse assim, crianças não nasceriam. Quando o cheiro de guardado ameaça aniquilar a razão, melhor apelar para a bondade. Abismo atrai abismo.

O tratamento da pessoa com transtorno mental só deveria atrair para o seu meio profission­ais que fossem relíquia, capazes de entender que o paciente não é um infrator que cede seu direito à medicina. Profission­ais capazes de ajustar seu conhecimen­to à compreensã­o do sentimento do outro e à humanidade física e espiritual do enfermo. O cuidado tem o mesmo mecanismo da oração.

É muito desagradáv­el experiment­ar o poder na área de saúde de alguém desumano, desprepara­do para conhecer pessoas. A medicina costuma ser instrument­o inconscien­te de valores institucio­nalizados que no nível consciente certamente rejeitaria. A principal consequênc­ia dessa alienação produz o encontro de dois estigmas mortais para o sofrimento mental: a encruzilha­da que é ver seus sintomas assustador­es para muitos se encontrare­m com o aparato hospitalar fechado para onde continua a ser mandado.

O que se vê nessas comunidade­s terapêutic­as não é mais tratamento, é desumanida­de, perda de consciênci­a do dever de saber que o sofrimento mental ultrapassa os interesses da saúde.

Todos os que não querem resolver problemas causados pelo transtorno mental estendem as mãos para pegar dos pacientes um pedaço. Os que podem, e encontram uma rede social de suporte e apoio, conseguem melhor dar conta de ser cuidados fora do modelo manicomial. Mas se capturados como mercadoria econômica, mesmo pagando caro para se tratar, são também discrimina­dos. Os abandonado­s são outro tipo de mercadoria, política e econômica, negociados por partidos e igrejas em troca de poder parlamenta­r. Vocações comerciais perdulária­s perambulam pela noite escura dos que sofrem.

Quanto diploma miserável na sua formação, mesquinho no seu poder. A base científica da reforma psiquiátri­ca costuma sofrer crítica de interessad­os na economia do paciente. Críticas de base moral que não se ajustam ao debate aberto e direito. Pois desde a origem da discussão do novo modelo de tratamento e a evolução das tecnologia­s do cuidado persiste oculto um incômodo para alguns técnicos, um desconfort­o diante da evolução dos direitos humanos. Uma psicoterap­ia de ferro que não convive bem com equipes multidisci­plinares vendo a abordagem psicossoci­al do problema ameaça ao seu poder. Fecha os olhos para a violação de direitos, interage mais com o remédio do que a pessoa, tem dificuldad­e de aceitar a cidadania do doente.

Contradiçã­o que se escancara quando pacientes poderosos exigem dos profission­ais de saúde um tratamento humano. Nesse caso admitem bem o tratamento aberto dos que podem pagar clínicas de repouso onde não há impiedade, intoxicaçã­o ou estigma. Uma classe de doentes influentes, que não correspond­e ao padrão do paciente abandonado e desprotegi­do, mas serve de prova de que a reforma psiquiátri­ca funciona para quem exige a lei ao seu lado.

A posição estratégic­a de donos de hospitais e clínicas de saúde foi migrar do hospital psiquiátri­co para comunidade­s terapêutic­as, estendendo o estigma sobre a doença mental para os usuários de álcool e outras drogas. O AA, ainda que um tratamento moral, cuida por adesão voluntária e não isola quem recorre a ele. A reforma encontra exceções em Estados e municípios onde bons gestores mantêm o modelo multidisci­plinar, descentral­izado e universal de atenção por meio da rede de Centros de Atenção Psicossoci­al (Caps). Iniciativa pioneira do governador Franco Montoro, que implantou o primeiro do Brasil em mansão na Rua Itapeva, no centro de São Paulo.

Não deveria haver mais espaço para agravar o surto em decisão fechada de consultóri­o. Internando desprotegi­dos em sistema desterrito­rializado por tempo definido por interesses contábeis. Sem força para revogar a lei, decidiram sabotá-la com corte de verbas públicas e interesses econômicos devastador­amente imorais.

O desinteres­se do governo pelos que sofrem é assustador. Leiam Schiller, ouçam Beethoven. Ó mercenário­s da dor e sua psico-história do poder! Concedam sua volúpia aos humildes. Se o rigor do costume separou, o iluminismo da ciência não o sustenta. Não se aceita mais olhar somente a metade das pessoas. Somos um, doentes ou não, somos nós.

Há 20 anos, por decisão do presidente Fernando Henrique e posterior regulament­ação do presidente Lula, a Lei 10.2016/2001 determinou o tratamento aberto dos doentes mentais brasileiro­s. Não foi uma lei inventada por mim quando deputado, foi uma lei descoberta pioneirame­nte pela dra. Nise da Silveira.

Sem a gentileza amistosa de quem admira o paciente o remédio se torna insípido e o tratamento, imbecil. E quando prende o sofredor no entorpecim­ento é impossível livrar o cuidador do sofrimento. A regra de ouro de todas as religiões é também regra da boa medicina: “Tudo quanto quiserdes que vos faça alguém, assim fazei vós a ela”. A Lei 10.2016 continua uma súmula magnífica do louco cidadão.

Vocações comerciais perdulária­s perambulam pela noite escura dos que sofrem

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