Falha nossa
Uma brincadeira que gostaria de fazer com mais frequência é perguntar para as pessoas a última vez em que elas entraram numa discussão acalorada, mas estavam erradas. Não faço tanto isso porque minhas habilidades de interação social, embora não sejam excelentes, são suficientes para me impedir de criar esse embaraço. E também porque sei que levaria bronca da minha esposa, provavelmente com razão.
Trata-se de uma situação potencialmente embaraçosa porque, evidentemente, ninguém está sempre certo, mas, como é difícil se lembrar rapidamente de um exemplo assim por alguns instantes, a pessoa fica constrangida, não querendo parecer arrogante, mas sem conseguir desfazer essa impressão. Pois é, não se trata de uma brincadeira muito recomendável.
Esse é apenas um dos muitos vieses cognitivos que vêm instalados de fábrica em nosso cérebro. Todos temos certo viés egocêntrico, acreditando que somos melhores do que a média, que temos mais mérito pelos sucessos do que culpa pelos fracassos, e lembramos seletivamente mais daquelas coisas que reforçam uma visão positiva de nós mesmos.
Aquilo que ataca nossa autoimagem de pessoas boas e competentes não é tão prontamente relembrado.
A maioria desses vieses deve ter servido bem à nossa sobrevivência como espécie – prestar mais atenção no que é novidade do que naquilo a que estamos habituados, por exemplo, nos ajuda a lidar com mudanças súbitas no ambiente. O problema é que nós não vivemos mais naquela realidade, o que gera um descompasso prejudicial. Um viés que ilustra isso muito bem é o desconto hiperbólico, que nos faz dar mais valor e importâncias para as coisas imediatas do que para as futuras. Nós evoluímos num mundo em que o amanhã era incerto, então, o importante era sobrevier já. Mas, com a criação das cidades, a revolução científica, a evolução da medicina, hoje vivemos muito mais. No entanto, em nossa mente, o futuro continua parecendo desbotado, com pouco apelo emocional. Assim, a recompensa imediata do sedentarismo agora parece maior do que a saúde no futuro; a compra fútil hoje traz mais prazer do que a reserva financeira amanhã; e mesmo a dor de um tratamento dentário agora parece mais intensa que a grave inflamação lá na frente.
Nas últimas décadas, cientistas do comportamento, psicólogos, economistas e toda a sorte de pesquisadores interessados no processo de tomada de decisão vêm dando grande importância a esses vieses, já que seu impacto em nossa percepção de mundo não pode ser negligenciado. Eu mesmo reuni cinquenta dos mais comuns no meu recente livro, Percepção
x Realidade, lançado este ano no formato de livro-caixinha pela Editora Matrix. Dicas de como lidar com eles e trazê-los à consciência, afinal, são fundamentais, já que não é possível simplesmente desinstalá-los de nossos cérebros.
Só um alerta final: use com cuidado, pois apontar os vieses cognitivos que levam os outros a acreditar em determinadas bobagens já me rendeu a antipatia de mais de uma pessoa. Não que eu esteja sempre certo nas discussões, mas agora você já sabe porque é complicado lembrar daquelas em que eu estava errado.
É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’