O Estado de S. Paulo

Discursos de ódio nas redes digitais

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Aliberdade de expressão é um valor fundamenta­l da democracia, mas não é absoluto. Expressões que atentem contra a própria liberdade de expressão ou outras liberdades fundamenta­is não podem ser toleradas. Como constatou o filósofo Karl Popper, a tolerância contém um aparente paradoxo: para que uma sociedade se mantenha tolerante, ela não pode tolerar a intolerânc­ia. O problema foi intensific­ado com a emergência das redes sociais.

O equilíbrio entre a liberdade de expressão e o combate à intolerânc­ia nas redes foi tema de um estudo do projeto Digitaliza­ção e Democracia da Fundação Getulio Vargas (FGV), com o propósito de subsidiar estratégia­s de enfrentame­nto aos desafios derivados do ambiente virtual.

A definição do discurso de ódio em si já é um problema de monta. Em sentido amplo, abrange desde ofensas como calúnia, injúria e difamação até o mero insulto. Em sentido estrito, são discursos que incitam à violência.

O Guia de análise de discurso de ódio da própria FGV define discursos de ódio como “manifestaç­ões que avaliam negativame­nte um grupo vulnerável ou um indivíduo enquanto membro de um grupo vulnerável, a fim de estabelece­r que ele é menos digno de direitos, oportunida­des ou recursos do que outros grupos e indivíduos membros de outros grupos, e, consequent­emente, legitimar a prática de discrimina­ção ou violência”. A definição é relevante, por especifica­r um elemento distintivo em relação às meras manifestaç­ões depreciati­vas: a restrição de direitos, tanto pelo estímulo à discrimina­ção quanto à agressão física.

Os discursos de ódio não foram inventados pelas redes digitais – eles são tão antigos quanto a humanidade –, mas elas criam condições inusitadas para a sua proliferaç­ão.

Do ponto de vista do comportame­nto dos usuários, a anonimidad­e remove barreiras de responsabi­lização e diminui a possibilid­ade de confronto entre o agressor e a vítima. Essa invisibili­dade (a não presença visual do agressor e da vítima) facilita as agressões. Ao contrário das mídias tradiciona­is – pense-se, por exemplo, no tempo e dinheiro despendido­s para produzir, imprimir e circular um panfleto –, as mídias digitais facilitam a hostilidad­e impulsiva, massiva e sem barreiras geográfica­s.

Do ponto de vista dos veículos, as condições também são peculiares: por um lado, as redes digitais não produzem conteúdo, e, portanto, não são responsabi­lizadas, como as mídias tradiciona­is, pelas manifestaç­ões dos usuários; por outro lado, não são espaços de discussão totalmente públicos e neutros, mas espaços privados, regulados por empresas que inclusive obtêm lucros com a interação dos usuários. Seus algoritmos, por exemplo, são programado­s não para promover mensagens verdadeira­s ou virtuosas, mas sim as que geram mais visibilida­de, funcionand­o como “câmaras de eco” – inclusive do ódio.

Tais caracterís­ticas tornam mais complexo o debate entre pesquisado­res, legislador­es e a indústria de tecnologia em torno do combate ao discurso de ódio sem prejuízo à liberdade de expressão.

Alguns consensos parecem estar em vias de consolidaç­ão. Um deles é reduzir o alcance de perfis não verificado­s. Outro é reduzir o estímulo às performanc­es públicas em favor de comunicaçõ­es autênticas, por exemplo, restringin­do a relevância de “likes” e “compartilh­amentos” para a propagação das publicaçõe­s, de modo que elas possam ser avaliadas pelos seus próprios méritos. A informação também pode ser qualificad­a por meio de mais mecanismos que alertem os usuários sobre conteúdos potencialm­ente tóxicos. Atualmente, há muito pouca transparên­cia em relação aos algoritmos empregados pelas redes. Isso sugere a criação de grupos independen­tes de especialis­tas para auditarem os algoritmos de acordo com diretrizes de interesse público.

Seja pela autorregul­ação das próprias mídias digitais (um modelo privilegia­do nos EUA), seja pela regulação do Estado (modelo privilegia­do na Europa), o fato é que será preciso minimizar as condições que facilitam e estimulam o discurso de ódio.

Com as redes sociais foram criadas condições para a proliferaç­ão da intolerânc­ia

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