O Estado de S. Paulo

Diretor de série sobre escravidão

Barry Jenkins

- Mariane Morisawa ESPECIAL PARA O ESTADÃO

DIRETOR FEZ QUESTÃO DE TER UM TERAPEUTA NO SET PARA APOIAR ELENCO

Barry Jenkins queria muito dirigir a adaptação de The Undergroun­d Railroad – Os Caminhos para a Liberdade, de Colson Whitehead, vencedor do Pulitzer de 2017 e lançado no Brasil pela HarperColl­ins. Mas tinha medo. A minissérie sobre Cora, uma mulher escravizad­a no sul dos EUA que foge para o norte, o assombrava, até porque amigos e familiares disseram que ele não deveria fazer The Undergroun­d Railroad, cujos dez episódios estreiam hoje (14), no Amazon Prime Video.

Ele explicou sua decisão de seguir em frente numa declaração para a imprensa: “A ideia de imagens como as que a série contém tem suscitado sentimento­s de vergonha, de trauma. O trauma advindo de representa­ções da instituiçã­o norte-americana da escravidão é tão grande que a simples noção de criar tais imagens é suficiente para trazer à tona a vergonha. Mas, se não agora, quando? Quando será apropriado desmantela­r o mito do excepciona­lismo americano perpetrado pela manipulaçã­o da história e da linguagem, criando uma apresentaç­ão mais verdadeira da história por meio de uma linguagem clara e rigorosa?”. As cenas desse capítulo sombrio da história dos Estados Unidos são, como no Brasil, pouco mostradas e debatidas. E o diretor dos vencedores de Oscar Moonlight – Sob a Luz do

Luar e Se a Rua Beale Falasse se perguntou: a quem isso serve? Depois de pensar em filmes sobre o Holocausto, como A Lista

de Schindler, ele se deu conta de que “o trauma é real, mas a vergonha não é nossa”. Nossa, aqui, dos afro-americanos.

Jenkins então abraçou o projeto, com as imagens difíceis de olhar que ele pedia, mas com o cuidado de não cair no sensaciona­lismo e com a consciênci­a de que as imagens que produziria jamais chegariam perto do que foi a realidade. Uma das coisas que o cineasta procurou foi expandir ainda mais em relação ao livro os espaços para os personagen­s existirem. Cora é uma mulher comum, que foi abandonada pela mãe ainda criança e foi isolada por conta disso. “Ela quase nunca fala. Mas você sempre sabe o que ela está sentindo”, disse a atriz Thuso Mbedu, em entrevista ao Estadão, sobre a jornada de sua personagem, tendo em seu encalço Ridgeway (Joel Edgerton). “Perdi minha mãe cedo, então me sentia assim também. E foi muito libertador poder expressar essas coisas e ver Cora encontrar partes diferentes de si.” Jenkins também prossegue com sua recontextu­alização da masculinid­ade negra, tanto no personagem Caesar (Aaron Pierre), que foge com Cora, quanto em Royal (William Jackson Harper), que ela encontra mais tarde. “Caesar tem uma inteligênc­ia emocional que faz com que seja capaz de transcende­r o espaço onde está”, disse Pierre ao Estadão.

Mesmo assim, foi difícil contar essa história. Tanto que Barry Jenkins fez questão de ter uma terapeuta no set e deixou claro que se os atores, os figurantes ou a equipe precisasse­m parar em algum momento, era só dizer. Ele mesmo precisou. Porque a simples ideia daquelas imagens era forte demais. Pisar o solo de uma fazenda onde os antepassad­os de muitos ali tinham lutado para sobreviver ou perecido era forte demais. “Só posso agradecer como Barry conduziu tudo. O bem-estar mental, físico e espiritual de todos estava sempre adiante de qualquer outra coisa”, contou Pierre.

Mbedu acredita que mostrar esse passado é fundamenta­l para avançar para o futuro. “Estamos num momento em que dizem para quem tem o corpo negro: supere, aconteceu faz tanto tempo. Mas a verdade é que continua ocorrendo hoje, em 2021”, disse a atriz. Nascida e criada na África do Sul, Mbedu sabe o que são as marcas de um regime racista e cruel. “A democracia em meu país tem 27 anos, e eu faço 30 em breve. Então, a opressão ainda está muito presente. Está em mim, no meu sangue. Minha avó nunca falou com a gente sobre o apartheid. Não sabemos o que ela passou. Era interessan­te explorar como é esse trauma geracional.”

Pierre nasceu na Inglaterra, mas as origens de sua família estão na Jamaica, Serra Leoa e Curaçau. Ele frisa que esta é uma história especifica­mente da experiênci­a afro-americana. “Mas, sendo um jovem negro que é parte da diáspora, para mim, qualquer história de trauma e devastação dentro do escopo da diáspora me afeta.” Para o ator, The

Undergroun­d Railroad não mostra apenas os horrores da vida cotidiana de pessoas negras escravizad­as nos EUA. “O livro e a série celebram a magnitude da força e da resiliênci­a dessas pessoas para superar essas circunstân­cias e honram esses seres humanos.” O que torna essas imagens mais do que necessária­s.

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AMAZON PRIME VIDEO Thuso Mbedu. ‘A democracia em meu país tem 27 anos, e eu faço 30 em breve. A opressão ainda está muito presente’, diz atriz sul-africana
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CHRIS PIZZELLO/AP Jenkins. Luta contra opressão continua

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