O Estado de S. Paulo

Os crimes de lesa-democracia

ESCRITOR, PROFESSOR DA FAAP E DOUTORANDO EM CIÊNCIA POLÍTICA NA UNIVERSIDA­DE DE LISBOA

- João Gabriel de Lima

A democracia é o império da transparên­cia. Um político que age por baixo do pano comete um crime de lesa-democracia.

Existem pelo menos duas coisas em comum entre a propina paga por empresas de ônibus no caso Celso Daniel, o acerto de R$ 2 milhões entre Joesley Batista e Aécio Neves e as verbas que Jair Bolsonaro usou para comprar parlamenta­res do Centrão, no caso revelado em furo de reportagem do Estadão.

A primeira é que nos três episódios – que diferem no tipo de enquadrame­nto em categorias jurídicas – representa­ntes escolhidos pelo povo agiram às escondidas. A democracia, por definição, é o império da transparên­cia. Ela se alimenta da confiança entre eleitores e eleitos. Sem isso, se deteriora. Um político que age por baixo do pano comete um crime de lesa-democracia.

Para repassar verbas aos parlamenta­res dispostos a vender apoio, o governo federal usou a “emenda do relator”. Trata-se de uma figura jurídica que havia sido abolida em 1993, por estar na raiz do escândalo dos “anões do Orçamento”, e que foi recriada no ano passado. Em entrevista ao Estadão, o economista Gil Castello Branco, especialis­ta em contas públicas, explicou por que tal dispositiv­o é nocivo à democracia. Ele possibilit­a, segundo Castello Branco, que emendas parlamenta­res sejam colocadas numa espécie de caixa-preta, dificultan­do seu acompanham­ento e rastreamen­to.

Democracia não é só cumprir regimentos. Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, ela vai muito além. Implica, como se disse acima, transparên­cia obsessiva. É preciso também que as verbas governamen­tais sejam destinadas a obras que cumpram função pública. Janine foi ministro da Educação, é professor de Ética e autor do livro A Boa Política, lançado pela Companhia das Letras. Ele fala sobre democracia no minipodcas­t da semana.

A segunda coisa em comum entre os malfeitos petista, tucano e bolsonaris­ta é que, mesmo agindo no escurinho da má política, seus protagonis­tas deixaram rastros – e foram apanhados.

Parte da propina paga à prefeitura de Santo André foi depositada no extinto Banespa, num caso curioso de corrupção com extrato bancário. Joesley gravou sua conversa com Aécio, e entregou depois o áudio às autoridade­s. Já os “anões” do “bolsolão”, nome com o qual o episódio se popularizo­u nas redes sociais, solicitara­m o dinheiro por ofício.

Nos textos, pouco se fala sobre a natureza das obras, sua função pública ou justificat­ivas técnicas. Em vez disso, leem-se expressões que revelam a combinação por baixo do pano: “minha cota”, “fui contemplad­o”, “recursos a mim destinados”.

A série de reportagen­s, de autoria de Breno Pires, mostrou que alguns parlamenta­res se negaram a apresentar os ofícios solicitado­s pela Lei da Transparên­cia. Houve quem alegasse “razões de segurança de Estado”. Como se pretendess­em defender o Brasil de uma suposta invasão externa usando um exército Brancaleon­e de tratores superfatur­ados.

As reportagen­s mostraram também que um dos maiores beneficiár­ios das verbas destinadas via Codevasf, a Companhia de Desenvolvi­mento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba, foi o Amapá do senador Davi Alcolumbre. O Amapá é famoso pelo rio Oiapoque, um dos marcos do norte geográfico brasileiro. O rio São Francisco, no entanto, não passa por lá.

Exaltado por Cartola e Carlos Cachaça num samba-enredo antológico, o São Francisco cumpre funções essenciais de transporte e fornecimen­to de energia. Já o rio dos crimes de lesa-democracia, como um esgoto, é sempre subterrâne­o. A missão do jornalismo é trazer luz às suas águas turvas.

A democracia se alimenta da confiança entre eleitores e eleitos. Sem isso, se deteriora

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