O Estado de S. Paulo

Esqueletos, impostos e reforma

- ANTONIO CARLOS PEREIRA / DIRETOR DE OPINIÃO

Decisão do STF sobre Pis/cofins é mais um esqueleto bilionário que vai complicar muito a gestão das contas da União.

Mais um esqueleto bilionário vai complicar a gestão, já muito difícil, das contas da União. Decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) pode impor ao Tesouro um custo de R$ 258,3 bilhões, segundo estimativa provisória. Em mais uma derrota para o governo, a retirada do ICMS da base de cálculo do Pis/cofins passará a valer a partir de 2017, quando essa alteração foi sacramenta­da pela Corte. A mudança afeta duplamente as finanças públicas. Além de reduzir a base de arrecadaçã­o do poder central, possibilit­a às empresas beneficiad­as a cobrança de uma vultosa compensaçã­o.

Duas derrotas foram impostas ao governo. A Procurador­ia-geral da Fazenda Nacional defendia a vigência da nova regra a partir do julgamento encerrado na última quinta-feira. Mas a alteração passa a valer a partir da decisão anterior, de 15 de março de 2017. Além disso, o governo reivindica­va uma alteração mais branda, com desconto do ICMS efetivamen­te pago pelas empresas depois do abatimento de créditos fiscais. Mas, pela decisão do STF, deve-se descontar o ICMS destacado na nota fiscal.

Especialis­tas ainda poderão examinar e discutir minúcias técnicas da nova decisão do tribunal, mas o resultado mais importante desse processo é muito simples. Ao retirar o ICMS da base de cálculo do Pis/cofins, a Justiça extingue uma anomalia, a cobrança de tributo sobre tributo. Aberrações desse tipo deveriam ter desapareci­do há muito tempo. Afinal, eliminar a tributação cumulativa foi uma das bandeiras da grande reforma posta em vigor em 1967.

Lançado naquela época, o novo tributo estadual, o Imposto sobre Circulação de Mercadoria­s (ICM, depois convertido em ICMS), foi inspirado em novo modelo europeu. Em cada etapa da circulação – ao longo da transforma­ção industrial, por exemplo – o imposto deveria incidir apenas sobre o valor adicionado, eliminando-se do valor de referência o tributo recolhido na fase anterior. O princípio deveria valer para todo o sistema, incluído o recém-criado Imposto sobre Produtos Industrial­izados (IPI), cobrado e administra­do pela União.

A reforma de 1967 foi enorme avanço, mas o novo sistema sempre carregou defeitos. Alguns foram reparados. Outros permanecer­am. Além disso, uma falha original deu origem a muitos problemas. Na Europa, o imposto sobre valor adicionado (IVA), modelo do ICM, era cobrado pelo poder central e depois distribuíd­o aos governos subnaciona­is. No Brasil, a competênci­a estadual sobre esse tipo de imposto deu espaço a enormes distorções.

A mais notável foi a guerra fiscal, praticada por meio da concessão de benefícios para atração de empresas e de investimen­tos privados. Essa distorção deu origem a outras, favorecend­o, por exemplo, decisões de investimen­to baseadas estritamen­te, ou quase, na expectativ­a de facilidade­s tributária­s. Estados prejudicad­os buscaram solução no STF, mas as decisões eram demoradas ou ineficazes.

As caracterís­ticas principais do tributo estadual foram mantidas na Constituiç­ão de 1988, com extensão da incidência a serviços (daí a alteração do nome para ICMS). Também se manteve um defeito importante: na exportação, só bens industrial­izados ficaram isentos – um erro enorme, especialme­nte num país exportador de grandes volumes de produtos agropecuár­ios e minerais. Com demora, essa falha foi pelo menos atenuada.

O problema da tributação de exportaçõe­s nunca se resolveu completame­nte, porque sempre sobraram créditos acumulados. Da mesma forma, problemas de incidência nos investimen­tos e na produção nunca foram atacados de forma satisfatór­ia. Qualquer reforma séria levaria em conta essas questões jamais superadas – o peso dos tributos sobre a produção e sobre a formação de capital, a incidência sobre a exportação, as complicaçõ­es associadas à competênci­a estadual, o efeito regressivo da tributação do consumo, etc. Não há como cuidar dessas questões sem pensar em todo o sistema. Esta exigência foi ignorada pelo atual governo e por seus aliados, comprometi­dos com uma reforma parcial, fatiada e miseravelm­ente ineficaz.

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