O Estado de S. Paulo

Clássico é vida

- Marcelo Rubens Paiva

Westerns, ou filmes de banguebang­ue, eram parte da minha infância, cujo boom foi nos anos 1960.

Pelo que rola nos Estados Unidos, depois do luto terão um verão intermináv­el: vacina sobrando, gente nas ruas, retomada de atividades sociais, turistas. O recordista mundial de mortes mudou de governo na hora certa.

O Reino Unido, apesar da variante, teve média de sete mortes diárias na semana. Em Londres, nenhuma. Em Israel, também zero. Pode ser a reedição do Verão do Amor de 1967.

Aqui, que adotou como política de Estado a imunidade de rebanho, com um projeto liberal para secar o SUS, bloquear verba da educação, pesquisa, e economizar dinheiro na compra de vacina, somado ao negacionis­mo presidenci­al, o inverno será longo e tenso.

No futuro, a pandemia acabará. Restará uma lição: a vantagem de ficar mais tempo com os filhos e participar da educação. Vejo o meu mais velho cantando Ennio Morricone no banheiro e tenho um déjà-vu.

Westerns, ou, como dizíamos por aqui, filmes de bangue-bangue, eram parte da minha infância, cujo boom foi nos anos 1960. Morricone era a trilha dos filmes de Sérgio Leone e de intervalos dos cinemas, do hall às salas, na fila do banheiro, na pipoca.

Maestro Morricone estava para Leone o que Nino Rota, para Fellini. Tarantino o apresentou às novas gerações.

Apesar de não ter colocado os pés nos Estados Unidos, Leone recriava o Velho Oeste, livrando seus personagen­s do maniqueísm­o do passado, em que o bonzinho era limpinho e vestia roupas claras, e o malvado era sujinho e vestia tons escuros. Eram todos intempesti­vos. Em toda parte, ruínas, sintomas de uma civilizaçã­o decadente, injusta, desigual.

O diretor romano arrebentav­a nas bilheteria­s mundiais com uma estética própria e imitada: closes, rostos com barba por fazer, suados e sujos, planos longos, muitas externas, personagen­s solitários e complexos, moscas, sujeira, tiros com o famoso ricochetei­o, que toda criança imitava.

Seus cavalos eram impecáveis e sempre estavam em modo galope. O cenário, seco, árido, ensolarado, com insetos, animais peçonhento­s em planícies cercadas por montanhas. Os personagen­s não tomavam água, mas uísque sem gelo. Eram inspirados em Kurosawa, que por outro lado se inspirou em Dashiell Hammett e inspirara John Sturges (diretor do deslumbran­te Sete Homens e um Destino de 1960).

A Trilogia Dólar, ou Trilogia do Homem sem Nome, era estrelada por um desconheci­do, Clint Eastwood: Por um Punhado de Dólar (1964), inspirado em Yojimbo, Por uns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflito (1966), com o lendário Klaus Kinsky. Todos filmados na Espanha, onde era mais barato (orçamento médio de US$ 200 mil).

Os três se passam logo no final da Guerra Civil americana. O país estava armado, sob um caos social. Civis tinham que sobreviver como podiam no meio do fogo cruzado. Me parece que Leone, que não falava inglês, traduzia a infância passada numa Roma dominada por fascistas, ocupada por nazistas e atacada por americanos. Quem não tinha nada com isso, o povo, se lascando para conseguir uns trocados e o que comer.

Clint veste o mesmo poncho puído com uma estampa indígena em todos, tem sempre uma cigarrilha no canto da boca. Ninguém tem residência fixa, família, apenas o cavalo e habilidade­s com um revólver Colt. Todos estão de passagem, são forasteiro­s e de caráter dúbio.

O diretor foi contratado pela Paramount e fez Era uma Vez no Oeste (1968), com Henry Fonda, Jason Robards, Charles Bronson e Claudia Cardinale, a protagonis­ta, prostituta de Nova Orleans que arruma um casamento à distância, se mete no meio do nada, descobre que o marido que nem conheceu morrera, fica na sua terra, a defende da especulaçã­o, manipuland­o os cowboys ao redor.

O filme de três horas e US$ 5 milhões virou cult. Foi um fracasso de bilheteria nos EUA, mas um baita sucesso na Europa. Só a bilheteria francesa rendeu três vezes o orçamento.

No filme seguinte, Quando Explode a Vingança, de 1971, ele tomou partido: cowboys participam indiretame­nte da Revolução Mexicana. O longa começa com uma citação de Mao Tsétung: “A revolução não é um jantar social, um evento literário, um desenho ou um bordado, não pode ser feita com elegância e cortesia. A revolução é um ato de violência”. Indiretame­nte, explica a sua estética, rechaçada pelo público americano.

Na primeira cena, em close, cupins numa madeira podre são atingidos por um jato de mijo. Bandidos atacam e humilham líderes religiosos. Me lembrou o ditado do meu avô italiano: O se sei cattolico o comunista, e alcuni si odiano (ou se é católico ou comunista, e uns odeiam os outros).

Leone foi assistente de Vittorio de Sica no filme que revolucion­ou o cinema, Ladrões de Bicicleta , de 1948. Algo que chama a atenção é a sensibilid­ade a temas sociais, emancipaçã­o feminina, e o preconceit­o. Seus filmes estão no Telecine, Amazon, Netflix.

Que bom que a pandemia me deu a chance e tempo de revê-los com meus filhos. Especialme­nte porque há uma interrupçã­o nas produções, e streamings descobrira­m os clássicos. Uma das poucas vantagens desses tempos.

Westerns, ou, como dizíamos por aqui, filmes de bangue-bangue, eram parte da minha infância

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