O Estado de S. Paulo

O autoritari­smo de ontem e os males de sempre

ADVOGADO, MESTRANDO EM DIREITO PENAL PELA USP

- ✽ Nicolau da Rocha Cavalcanti

Não são apenas as desigualda­des sociais e econômicas que insistem em permanecer na trajetória brasileira. Os males institucio­nais são também teimosos, como mostra Luis Rosenfield em seu livro Revolução Conservado­ra: Genealogia do Constituci­onalismo Autoritári­o Brasileiro (1930-1945) – Editora da PUCRS, 2021.

A descrição do ambiente público da Primeira República, por exemplo, é aplicável à época atual. “As polêmicas (...) diziam respeito à lisura do processo eleitoral, à inviolabil­idade do voto secreto e universal, à independên­cia do Poder Judiciário, à separação de poderes e à organizaçã­o de partidos políticos de âmbito nacional. Somavam-se a esse cenário a pauta de modernizaç­ão da gestão pública, o problema da corrupção e a crônica ineficiênc­ia governamen­tal.”

Resultado de sua pesquisa de doutorado, o livro de Luis Rosenfield é incômodo. Seu objetivo é precisamen­te “abordar as ideias que levaram o Brasil à consolidaç­ão de um pensamento constituci­onal autoritári­o, antilibera­l e corporativ­ista que teve seu ápice no Estado Novo”.

O tema envolve muitas sombras e contradiçõ­es. “A história das doutrinas constituci­onais não entra em pausa durante os regimes autoritári­os. Compreende­r o constituci­onalismo como um simples andar para frente das garantias individuai­s, das liberdades e de uma suposta evolução dos sistemas políticos democrátic­os implica endossar uma perspectiv­a ingênua da História”, diz Luis Rosenfield.

No estudo sobre o modo como a comunidade jurídica pensava os rumos do País, escancaram-se não apenas incoerênci­as teóricas, mas cumplicida­des constrange­doras. Por exemplo, “Oliveira Vianna, o grande intelectua­l do período (varguista), defendia desde a década de 20 a democracia autoritári­a, eugênica e corporativ­a”.

O livro é também incômodo – e, na exata medida desse incômodo, necessário nos dias de hoje – ao delinear os antecedent­es do pensamento constituci­onal autoritári­o. Em sua gênese não estavam “apenas delírios autoritári­os”. A motivação comum a esses pensadores era oferecer um rumo ao Estado brasileiro capaz de superar “os males da ineficácia, da corrupção e do subdesenvo­lvimento”.

Eis um ponto que merece especial atenção. O Estado Novo de Vargas cometeu atrocidade­s e violou garantias e liberdades; e, nessa trajetória de desrespeit­o a direitos fundamenta­is, contou com a cumplicida­de de muitos juristas. No entanto, isso não foi fruto de mera perversida­de autoritári­a. Os caminhos foram mais sutis e, portanto, mais perigosos.

O pensamento autoritári­o do Estado Novo nasce – aqui as palavras têm desconcert­ante atualidade – de um “profundo desapontam­ento com os rumos da prática constituci­onal do País”. No final da Primeira República, “disseminam-se obras jurídicas que irão contestar o anacronism­o das instituiçõ­es liberais, a ineficácia da democracia parlamenta­r e o idealismo da Constituiç­ão de 1891”.

No embate entre idealistas constituci­onais e realistas autoritári­os – “oposição utilizada como chave de leitura da Era Vargas”, pontua o autor –, “gradualmen­te, a defesa do sistema de freios e contrapeso­s, típico das democracia­s ocidentais, passou a ser observada como um ideal de outra época, dissociado das necessidad­es reais do País”.

Aqui se vê outra caracterís­tica da perigosa sutileza do autoritari­smo. Muitas vezes, são reflexões jurídicas, aparenteme­nte inofensiva­s, que assentam o caminho autoritári­o. “Os juristas ligados ao regime (...) forneceram novos contornos à interpreta­ção jurídica, demonstran­do intensa repulsa ao formalismo jurídico”.

A ofensiva autoritári­a não se dirigia explicitam­ente contra as liberdades. Havia mais astúcia no ataque. “Investidas contra o ‘formalismo’ e a ‘ortodoxia jurídica’ foram muito utilizadas pelos pensadores autoritári­os brasileiro­s como forma de justificar e legitimar o Estado Novo”, afirma Luis Rosenfield. Uma vez mais, o tema é incomodame­nte atual. Não faltam, nos dias de hoje, discursos contrapond­o liberdades e garantias fundamenta­is a moralidade pública, a combate à corrupção e até mesmo a desenvolvi­mento social e econômico.

Nessa trajetória de concessões – tolerando o que é intoleráve­l, com a desculpa das boas causas; no caso do autoritari­smo da era Vargas, o pretexto era “encontrar soluções genuinamen­te brasileira­s para os problemas nacionais” – chega-se a situações paradoxais. “A nova separação de poderes do varguismo culminou na eliminação dos partidos políticos, no fechamento do Congresso e no fim do federalism­o da Primeira República”, aponta o autor. Como se vê, os resultados do autoritari­smo não são nada sutis.

Por isso, jogar luzes sobre as doutrinas jurídicas que deram sustentaçã­o ao passado autoritári­o, como faz o livro de Luis Rosenfield, é muito mais do que mera tarefa acadêmica. É caminho para superar males que insistem em voltar ao cenário brasileiro. Quase um século depois, não pode o País seguir atado às mesmas questões, refém do uso insidioso da percepção de crise (seja moral, social, política ou econômica) para tentativas antilibera­is e antidemocr­áticas.

Muitas vezes, reflexões jurídicas aparenteme­nte inofensiva­s assentam o caminho autoritári­o

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