O Estado de S. Paulo

O adeus do cacique pragmático do MDB

Ex-presidente da Assembleia Legislativ­a do Rio de Janeiro tinha câncer na bexiga

- Wilson Tosta /

Um dos símbolos da política fluminense na era Cabral, o ex-deputado Jorge Picciani foi influente em cinco governos do Rio, interlocut­or político de presidente­s e ministros e padrinho de alianças e articulaçõ­es à direita e à esquerda. Com Sérgio Cabral Filho e Paulo Melo, formou na Assembleia Legislativ­a do Rio um trio que, por quase um quarto de século, foi decisivo nos bastidores da política fluminense. Viveu o auge do poder no Estado, que lhe deu acesso a palácios governamen­tais e à prosperida­de, mas também o levou à cadeia, acusado de corrupção. Morreu aos 66 anos, ontem, de câncer, sem mandato, enfrentand­o a Justiça, no ostracismo – apenas um homem.

Um político fluminense, que pediu anonimato, definiu o colega como “pragmático”. Segundo ele, “era o cara que fazia a guerra e assinava, com a maior tranquilid­ade, o acordo de paz”. Picciani também era capaz de “ameaçar com CPI” um governo e depois ajudá-lo a conseguir verbas – sempre por pragmatism­o. No primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006), o ministro da Casa Civil, José Dirceu, não deixava de conversar com ele, sempre que vinha ao Rio.

Em 2014, Picciani comandou no Rio o Aezão – dissidênci­a de apoio a Aécio Neves (PSDB) e a Luiz Fernando Pezão (PMDB), contra o PT. Depois, recompôsse com Dilma, de quem se afastaria, para ajudar a articular o impeachmen­t. Chegou a ir a São Paulo para uma reunião de estratégia com Michel Temer e Eduardo Cunha.

Tanto pragmatism­o começou, aparenteme­nte, após a primeira candidatur­a a deputado estadual, pelo PSB, em 1986, no Rio de Janeiro pós-ditadura. Derrotado na legenda renascida com o fim do autoritari­smo, Picciani mudou-se para o PMDB, então o maior partido do País, com quase todos os governos estaduais e o controle do Palácio do Planalto. Elegeu-se para a Alerj, em 1990, e ali cresceu politicame­nte. Emendou cinco mandatos como deputado estadual, tornou-se primeiro-secretário – o poderoso administra­dor do Legislativ­o. Depois de Cabral trocar a presidênci­a da Casa pelo Senado, em 2002, virou presidente da Assembleia.

Subúrbio. Na infância em Mariópolis, Picciani vendia doces. Eram feitos pela mãe, uma doceira com antepassad­os árabes. O pai era confeiteir­o, descendent­e de italianos. Tinha três irmãos. O parlamenta­r contava, divertido, que vendia cocadas em um bordel, e dizia ter estudado no Colégio Pedro II.

Formou-se em contabilid­ade pela Universida­de do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em estatístic­a pela Escola Nacional de Ciências Estatístic­as (ENCE). Trabalhou no IBGE e foi auditor fiscal em Mato Grosso, no início dos anos 1980. Em 1984, foi um dos funcionári­os afastados em sindicânci­a interna sobre um suposto esquema de sonegação fiscal. Deixou seu posto em Rondonópol­is.

No mesmo ano, comprou sua primeira fazenda – 168 hectares em Cachoeira do Funil, Rio das Flores (RJ).

A condição de produtor rural sempre foi objeto de questionam­entos dos adversário­s. Apontavam suposto uso da atividade como pecuarista como biombo para esconder dinheiro de origem ilegal. Ele negava. Segundo suas declaraçõe­s de bens à Justiça eleitoral, seu patrimônio, em valores não corrigidos, foi de R$ 200 mil em 1997 a R$ 10,3 milhões em 2013.

A partir de 1995, com a eleição de Cabral para a presidênci­a da Alerj – com Picciani na primeira-secretaria e Paulo Melo como líder – o trio cresceu politicame­nte. Começou ali o ciclo de influência política dos três nos governos de Marcello Alencar (1995-1998), Anthony Garotinho (1999-2002) e Rosinha Garotinho (2003-2006). Em 2007, com a eleição de Cabral para o governo do Rio, o grupo chegou diretament­e ao Palácio Guanabara. Picciani então assumiu o comando da Assembleia Legislativ­a. Sob sua presidênci­a, a Casa, claro, apoiou o governo Cabral – cujo esquema de corrupção ruiria anos depois. Mas também abrigou a CPI das Milícias, que apontou a ação de grupos criminosos na política do Rio.

Em 2010, tentou o Senado. Numa conversa a bordo de um avião, Cabral tentou convencêlo a fazer campanha com Lindbergh Farias (PT). Com seu jeito durão, Picciani cortou o diálogo, dizendo que cuidaria da sua campanha sozinho. E, com o aparelho no ar, anunciou a Cabral: “Eu desço aqui”.

De volta à Assembleia, em 2015, e influente de novo no governo estadual, agora sob Pezão, Picciani foi preso, em 14 de novembro de 2017 na Operação Cadeia Velha. Era um desdobrame­nto da Lava Jato no Rio, que investigav­a uma caixinha de empresário­s de ônibus para deputados. Seu filho, Felipe Picciani, também foi preso. “O que aconteceu hoje com meu filho é uma covardia feita para atingir tão somente a mim”, reagiu, no Facebook. Melo também foi preso.

Desde 2016, Cabral já estava na cadeia. Picciani, que já fora alvo de condução coercitiva, em março, na Operação O Quinto do Ouro, conseguiu ser solto, mas não teve como disputar o pleito de 2018. Ainda em 2017, foi diagnostic­ado com câncer de bexiga, que o matou no Hospital Vila Nova Star.

“O MDB do Rio está de luto”, afirmou em nota o diretório fluminense do partido, do qual era o último cacique, massacrado nas eleições de 2018, na avalanche do bolsonaris­mo. / COLABOROU CAIO SARTORI

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TANIA REGO/AGENCIA BRASIL–19/12/2016 Protagonis­mo. Jorge Picciani influencio­u a política carioca por quase um quarto de século

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